Superabundância de dons
A festa de hoje, caríssimos, celebrada em todo o orbe terreste, foi consagrada pela vinda do Espírito Santo que, após a ressurreição do Senhor, no qüinquagésimo dia, conforme era esperado, desceu sobre os apóstolos e sobre o povo fiel (At 2,1). Era esperado porque prometera o Senhor Jesus que haveria de vir (Lc 24,49; 41,4), não para começar a fazer dos santos a sua morada, mas a fim de inflamar os corações que já lhe eram sagrados com maior fervor e inundá-los mais abundantemente. Havia de cumulá-los de seus dons e não apenas iniciar a doação. Não era, pois, obra nova, mas liberalidade mais rica.
A majestade do Espírito Santo jamais se separa da onipotência do Pai e do Filho e as disposições universais do governo divino provêm da providência da Trindade toda. Uma só é a benignidade da misericórdia, uma a severidade da justiça. Nada se divide na ação, quando nada diverge na vontade.
Aquilo que o Pai ilumina, ilumina-o também o Filho, ilumina o Espírito Santo. Embora seja uma a Pessoa enviada, outra a que envia e outra a que promete, simultaneamente se nos manifestam a unidade e a Trindade. Se a essência possui a igualdade, sem admitir isolamento, entenda-se ser idêntica à substância, mas distinguirem-se as Pessoas.
Atribuições na obra de nossa redenção
Dispositivo de nossa redenção e razão de nossa salvação é realizar o Pai certas coisas, outras o Filho e outras propriamente o Espírito Santo, salva a cooperação da inseparável divindade.
Se o homem, criado à imagem e semelhança de Deus (Gn 1,26), houvesse permanecido na dignidade de sua natureza, se não tivesse sido enganado pela fraude diabólica, nem se desviado, pela concupiscência, da lei que lhe fora imposta, o Criador do mundo não se teria feito criatura, o sempiterno não se teria sujeitado ao tempo, nem Deus Filho, igual a Deus Pai, teria assumido a natureza de servo e a semelhança da carne de pecado. Mas, uma vez que “pela inveja do demônio a morte entrou no mundo” (Sb 2,24) e o cativeiro humano não poderia ser abolido a não ser que defendesse nossa causa aquele que, sem prejuízo de sua majestade, far-se-ia verdadeiro homem, sendo o único a não contrair o contágio do pecado, a misericórdia da Trindade distribuiu entre si a obra de nossa restauração, de modo que o Pai fosse aplacado, o Filho aplacasse, o Espírito Santo inflamasse.
Era preciso ainda que também fizessem alguma coisa em seu próprio benefício os que haveriam de se salvar e convertidos de coração ao Redentor, escapassem da dominação do inimigo, porque, como disse o Apóstolo: “Deus enviou aos nossos corações o Espírito de seu Filho, que clama: ‘Abba! Pai!’ (Gl 4,6). “Onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade” (2Cor 3,17). E, “ninguém pode dizer: ‘Jesus é o Senhor’, senão pelo Espírito Santo” (1Cor 12,3).
Em nada são atingidas a igualdade e a consubstancialidade
Se, portanto, caríssimos, orientados pela graça, conhecemos com fé e sabedoria o que em nossa restauração atribui-se propriamente ao Pai, e ao Filho e ao Espírito Santo, ou em comum às Três Pessoas, aceitaremos, sem dúvida, o que foi feito humilde e corporalmente em nosso favor, sem nada pensarmos de indigno sobre a glória da única e mesma Trindade. Embora espírito algum seja capaz de compreender a Deus, nenhuma língua de discorrer sobre ele, no entanto, por mais que o intelecto humano atinja acerca da essência da divindade paterna, se não pensar simultaneamente o mesmo de seu Unigênito ou do Espírito Santo, não é segundo a piedade que apreende, mas carnalmente demaistem o senso obscurecido e perde até o que parecia raciocinar de modo correto sobre o Pai.
Abandona toda a Trindade quem não sustentar que nela há unidade. Não pode, absolutamente, ser um o que difere por qualquer desigualdade.
Nada de semelhante na criação. Igualdade na Trindade
Quando, portanto, para confessar o Pai, o Filho e o Espírito Santo aguçamos a mente, repilamos para longe do espírito as realidades visíveis e as idades das naturezas temporais; para longe, os corpos que ocupam lugar e os lugares destinados aos corpos. Afaste-se do coração o que se distende no espaço ou se encerra dentro de limites, tudo o que não está sempre nem totalmente em toda a parte. O conceito de divindade da Trindade não inclua distância, nem procure graus; e quem pensar a respeito de Deus algo de mais adequado, não ouse negá-lo de uma das Pessoas, como se fosse mais honroso atribuí-lo ao Pai e não ao Filho e ao Espírito Santo.
Não é piedade preferir o Pai ao Unigênito. Ofensa infligida ao Filho é injúria feita ao Pai. O que se suprime em um, a ambos se subtrai. Comum é neles a eternidade e a divindade. Não se considere inferior a si próprio, ou se melhorou por adquirir para si um ser que antes não era seu.
Alegria dos discípulos por causa da ascensão
Disse, em verdade, o Senhor Jesus a seus discípulos, conforme foi proclamado na leitura evangélica: “Se me amásseis, alegrar-vos-íeis por eu ir ao Pai, porque o Pai é maior do que eu” (Jo 14,28). Mas, aqueles ouvidos que ouviram com maior freqüência: “Eu e o Pai somos uma só coisa” (Jo 10,30) e ainda: “Quem me vê, vê também o Pai” (Jo 14,9), entenderam-no sem estabelecer diferenças na divindade e não referiram a passagem àquela essência que sabiam ser com o Pai eterna e da mesma natureza. Aqui se indica a elevação do homem na encarnação do Verbo também aos santos apóstolos que, perturbados com o anúncio da partida do Senhor, são estimulados a uma eterna alegria por causa do acréscimo de honra à sua pessoa: “Se me amásseis, alegrar-vos-íeis por eu ir ao Pai” (ib. 28), isto é, se vísseis com perfeita ciência a glória que vos é conferida, porque eu, gerado de Deus Pai, também nasci como homem de uma mãe, e invisível como sou, mostrei-me visível, eterno na natureza de Deus, assumi a natureza de servo, havíeis de alegrar-vos “por eu ir ao Pai”.
Tudo isto vos presta esta ascensão a vós e a humilde condição de vossa natureza em mim é exaltada acima de todos os céus, até ser posta à direita do Pai. Eu, porém, que sou com o Pai o que o Pai é, em si mesmo, permaneço inseparável do genitor e assim, vindo de junto dele até vós, dele não me aparto, como também, voltando a ele, não vos deixo. Alegrai-vos, portanto, “por eu ir ao Pai, porque o Pai é maior do que eu”.
Uni-vos a mim e tornei-me filho do homem a fim de que possais ser filhos de Deus. Daí, embora eu seja um, possuindo ambas as naturezas, enquanto me conformo à vossa, sou menor que o Pai; enquanto, porém, não me separo do Pai, sou maior do que eu mesmo. A natureza, pois, que é menor que o Pai, vá ao Pai, para que esteja a carne, onde o Verbo sempre está.
Numa fé única, a Igreja católica confessa ser menor segundo a humanidade quem ela acredita ser igual ao Pai pela divindade.
Três Pessoas, uma essência, uma operação
Seja desprezada, portanto, caríssimos, a vã e cega malícia herética que se ilude com a interpretação errônea desta sentença. Tendo dito o Senhor “Tudo quan- to o Pai tem é meu” (Jo 16,15), ela não compreende que está tirando ao Pai tudo o que ousa negar ao Filho e assim erra em relação à humanidade, julgando faltar ao Unigênito os bens paternos, uma vez que assumiu os nossos.
A misericórdia de Deus não lhe diminui o poder, nem a reconciliação da criatura amada torna-seimperfeição da glória eterna.
Aquilo que o Pai possui tem-no igualmente o Filho, e o que tem o Pai e o Filho, também o possui o Espírito Santo, porque a Trindade toda simultaneamente é um só Deus.
Não descobriu este dogma de fé a sabedoria terrena, nem foi a opinião humana que a tal crença persuadiu. Ensinou-o o próprio Filho unigênito, o próprio Espírito Santo o instituiu. Deste último, nada se pense de diferente do Pai e do Filho, porque apesar de não ser o Pai, nem o Filho, no entanto não se separa do Pai e do Filho. Ele é na Trindade uma Pessoa, mas possui uma só substância na divindade do Pai e do Filho. Esta substância tudo enche, tudo contém, e com o Pai e o Filho governa o universo. À qual são tributadas honra e glória nos séculos dos séculos. Amém.
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