Mortos com Cristo, com ele ressuscitem os fiéis
No sermão anterior, caríssimos, julgamos ter-vos, como convém, incitado à participação da cruz de Cristo. Moveu-nos o desejo de que o mistério pascal penetrasse a vida dos fiéis, e nos costumes se guardasse o que a festa convida a venerar.
Experimentastes bem qual a utilidade de tudo isso. A devoção ensinou-vos quão proveitosos são para a alma e o corpo os jejuns mais prolongados, as preces mais freqüentes, as esmolas mais generosas. Quase não se encontra quem não tenha aproveitado desses exercícios e não haja depositado no íntimo de sua consciência alguma coisa que justamente o regosije. Sejam, porém, conservados, com cuidado e perseverança, os resultados obtidos. Cessado o esforço, não se volte à inércia, e a inveja do diabo não roube o que a graça de Deus concedeu.
Na observância dos quarenta dias procuramos conformar-nos de algum modo à cruz no tempo da paixão do Senhor; esforcemo-nos também para sermos participantes da ressurreição de Cristo e, enquanto estivermos neste corpo, passarmos da morte à vida.
Em qualquer conversão há um término do que era e um início do que não era. Importa saber para quem se vive, ou para quem se morre, porque há morte que é causa de vida e vida que é causa de morte. Tanto uma como outra realiza-se apenas no tempo que passa, e da qualidade das ações temporais é que dependem as diferentes retribuições na eternidade.
Trata-se, pois, de morrer para o diabo e de viver para Deus; de abandonar a iniqüidade e de ressurgir para a justiça. Pereça o que é velho, surja a novidade. E tendo dito a Verdade: “Ninguém pode servir a dois senhores” (Mt 6,24; Lc 16,13), seja Senhor nosso não aquele que impele os que estão de pé à ruína, e sim, aquele que eleva os prostrados à glória.
Abreviação dos “três dias”
Disse o Apóstolo: “O primeiro homem, tirado da terra, é terreno; o segundo vem do céu. Qual é o terreno, tais são também os terrenos; qual o celeste, tais os celestes também. E da mesma maneira que trazemos a imagem do homem terreno, traremos também a imagem do homem celeste” (1Cor 15,47-49). Motivo de grande alegria é nossa transferência da objeção terrena à dignidade celeste, pela misericórdia inefável de quem, para nos elevar ao que é seu, desceu ao que é nosso. Assumiu não apenas a substância, mas também a condição da natureza pecadora. Deus impassível permitiu fosse-lhe infligido o que experimenta, infelizmente, a mortalidade humana.
No intuito de que uma tristeza prolongada não atormentasse os ânimos dos discípulos, ele abreviou com admirável rapidez o prazo pré-estabelecido de três dias. Assim, diminuiu um tanto o espaço de tempo, sem nada faltar ao número de dias, pois juntou ao segundo dia inteiro a última parte do primeiro e a primeira parte do terceiro. A ressurreição do Salvador impediu que sua alma se demorasse nos infernos e seu corpo na sepultura. Tão rápida vivificação da carne incorrupta mais se assemelhou ao sono do que à morte. A divindade não se apartou de nenhuma das duas partes substânciais da natureza humana que assumiu, e o que separou com poder, pelo poder reuniu.
Provas da ressurreição
Muitas provas se seguiram dando autoridade à fé que havia de ser pregada no mundo inteiro. Além da pedra rolada, do sepulcro vazio, dos lençóis postos de lado, dos anjos a narrarem com pormenores o fato, provando suficientemente a realidade da ressurreição do Senhor, ele em pessoaapareceu visivelmente às mulheres e amiúde aos apóstolos (At 1,3). Não só falou com eles, mas também entrou em casa, tomou a refeição, admitiu que o tocassem e apalpassem com cuidado e curiosidade os que ainda eram presa da dúvida. Entrou com as portas fechadas no recinto onde estavam os discípulos (Jo 20,19). Com um sopro comunicou-lhes o Espírito Santo e, depois de dar-lhes a luz da inteligência, revelou o sentido oculto das Escrituras (Lc 24,27). Mostrou ainda a ferida do lado, as chagas dos cravos e todos os sinais da paixão recente (Jo 20,27). Tiveram de reconhecer que nele as propriedades das naturezas divina e humana permaneciam indivisas. Assim ficamos sabendo que o Verbo não se identifica com a carne e, confessamos que o Filho único de Deus é Verbo e carne.
Transformação na carne de Cristo
O mestre das gentes, o apóstolo Paulo, caríssimos, não discorda desta crença quando diz: “E, se todavia temos conhecido a Cristo segundo a carne, agora, porém, já não o conhecemos assim (2Cor 5,16). A ressurreição do Senhor portanto não eliminou a carne, mas a transmutou e o aumento do poder não consumiu a substância. A qualidade se alterou, a natureza não se desfez. Fez-se impassível o corpo que pôde ser crucificado; tornou-se imortal ele que pôde morrer; fez-se incorruptível depois que pôde ser ferido. Com razão se diz não ter sido reconhecível a carne de Cristo em estado igual ao anterior, porque nada restara de passível, nada ficara de fraco. Era a mesma essência, mas não idêntica pela glória.
Não é de admirar afirma Paulo do corpo de Cristo o que diz de todos os cristãos espirituais: “Nós, portanto, doravante não mais conhecemos a ninguém segundo a carne” (2Cor 5,16).
Em Cristo teve início a nossa ressurreição, porque há uma prefiguração do objeto de nossa esperança naquele que por todos morreu. Não hesitamos, desconfiados, nem ficamos em dúvida à espera do incerto. Tendo recebido o começo do que nos foi prometido, já temos com os olhos da fé o futuro e alegres com a promoção de nossa natureza, já estamos de posse do que cremos.
Deve aderir o cristão às coisas celestes
Não nos ocupem as aparências das coisas temporais, nem os bens terrenos desviem nossa contemplação das celestes. Sejam consideradas já passadas as coisas que em sua maior parte já não existem; e nosso espírito atento ao que permanece, fixe seus desejos lá onde são eternos os dons oferecidos. Embora salvos só em esperança, e ainda vivamos na corruptibilidade duma carne mortal, em verdade dizemos não vivermos na carne, se não nos dominarem os afetos carnais; com razão já não nos convém o nome daquele cuja vontade não seguimos.
Se o Apóstolo disse: “Não queirais afagar a carne, satisfazendo-lhe a cupidez” (Rm 13,14), sabemos não nos ser interdito o conveniente à saúde ou reclamado pela fraqueza humana. Mas, como não se deve atender a toda espécie de desejos, nem fazer tudo o que à carne apetece, fomos exortados à temperança de modo que à carne, sujeita ao juízo da razão, não concedamos o supérfluo, nem recusemos o necessário. Daí dizer o Apóstolo em outra passagem: “Ninguém jamais odiou sua própria carne, antes, cada qual a nutre e dela toma cuidado” (Ef 5,29). Seja alimentada e sustentada, não para praticar os vícios, nem para a luxúria, mas para cumprir o seu dever.
A natureza renovada mantenha-se na ordem; os apetites inferiores não prevaleçam de maneira torpe e perversa sobre os superiores, nem se submetam os superiores aos inferiores. Supere a alma os vícios e não haja escravidão onde deve haver domínio.
Evitar reincidência, após a festa pascal
Reconheça, pois, o povo de Deus ser em Cristo nova criatura, e vigilante compreenda quem aassumiu em si e a quem ela acolheu. Renovada, não volte à decrepitude instável. Não abandone o trabalho quem pôs a mão ao arado (Lc 9,62). Mas veja o que semeou, sem voltar-se para olhar o que deixou. Ninguém reincida no mal do qual surgiu; embora por fraqueza corpórea ainda esteja prostrado por algumas doenças, deseje instantemente ser aliviado e curado. Eis o caminho da salvação e a imitação da ressurreição iniciada em Cristo.
Como não faltam quedas nem tombos no terreno escorregadio desta vida, os caminhantes deixem o fluido e pisem terra firme, porque está escrito: “Do Senhor procedem os passos do homem, que ele guia e cujo caminho aprova. Se cair, o justo não fica prostrado, porque o Senhor o ampara pela mão” (Sl 36,23-24).
Seja mantido, caríssimos, este empenho não só na solenidade pascal, mas por toda a vida, santificando-a. Tendam a tornar-se um hábito os exercícios, e permaneçam intangíveis, uma vez que a sua curta experiência deleitou os espíritos dos fiéis. Se alguma falta penetrar sorrateiramente, seja apagada por um imediato arrependimento. E como é difícil e lenta a cura de doenças inveteradas, tanto mais depressa se empreguem os remédios, quanto mais recentes as feridas.
Sempre e integralmente nos reerguendo de todos os tropeços, mereçamos chegar àquela incorruptível ressurreição da carne que há de ser glorificada, em Cristo Jesus, Senhor nosso, o qual vive e reina com o Pai e o Espírito Santo, pelos séculos dos séculos. Amém
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