A PAIXÃO DO SENHOR - PARTE 2





Prisão do Senhor

Caríssimos, lembrando-nos do compromisso que assumimos, vimos agora desobrigar-nos, junto à vossa Santidade, do que vos devemos, esperando que a graça de Deus nos assista, de modo que a devoção nos venha daquele que nos inspirou a promessa que vos fizemos. O Senhor Cristo, preso pela turba, armada pelos príncipes dos sacerdotes e pelos doutores da lei, conteve seu poder, a fim de cumprir seu desígnio; ao bem-aventurado apóstolo Pedro, arrebatado por um sentimento humano contra os atacantes, ordenou que renunciasse à sua espada. Para aquele que recusava o socorro das legiões angélicas, era desnecessário querer ser defendido pela intervenção de um único discípulo. Que a turba furiosa fizesse o que queria e se alegrasse com o sucesso de seu crime; a força daquele que era preso foi, contudo, maior do que a dos homens que o prendiam. A cegueira dos judeus não obteve nada, a não ser perder-se a si mesma, por causa de sua impiedade; a paciência de Cristo, ao contrário, fez que ele salvasse todos os homens por sua paixão.

Jesus diante do tribunal de Caifás

Em seguida, Jesus é conduzido a Caifás, o príncipe dos sacerdotes; com ele estavam reunidos os escribas e toda a ordem sacerdotal. Procuravam-se falsos testemunhos contra o Senhor, mas, entre as vozes confusas e discordantes, Jesus tinha tomado a decisão de calar-se. Entretanto, a Caifás, que lhe disse: “Eu te conjuro pelo Deus Vivo que nos declares se tu és o Cristo, o Filho de Deus”, ele respondeu com uma autoridade tão verdadeira e tão prudente que pelas mesmas palavras deu um golpe na consciência dos incrédulos e confirmou os corações dos crentes; referindo-se a todo o interrogatório, ele respondeu: “Tu o disseste”, e acrescentou: “Eu vos digo que, de ora em diante, vereis o Filho do Homem sentado à direita do Poderoso e vindo sobre as nuvens do céu”. Mas Caifás, para tornar odiosas as palavras que tinha ouvido, rasgou suas vestes e, ignorando a significação desse gesto insensato, privou-se da honra do sacerdócio. Onde está, Caifás, o racional que ornava teu peito? Onde o cinto da continência? Onde o umeral, imagem das virtudes? Tu te despojas a ti mesmo dessa veste mística e sagrada e, com tuas próprias mãos, rasgas os ornamentos pontificais, esquecido do preceito que leste a respeito do príncipe dos sacerdotes: “Ele não deporá a tiara e não rasgará as suas vestes”. Mas tu, de quem essa dignidade já se afastou, tu te fazes executor de tua humilhação, a fim de que, para manifestar o fim da lei antiga, despoje-te do ornamento sacerdotal a mesma rasgadura que em breve romperá em suas partes o véu do templo.

Diante de Pilatos

Caríssimos, depois de uma noite passada no meio de zombarias sem nome, Jesus é entregue, amarrado, ao governador Pilatos. Com efeito, os príncipes dos sacerdotes e os anciãos do povo conduziam as coisas segundo um plano tal que eles aparecessem inocentes da execução de seu crime; eles subtraíam a cooperação de suas mãos, mas lançavam os dardos de suas línguas; não queriam condenar, mas gritavam: “Crucifica-o! Crucifica-o!” Que há de mais injusto do que essa aparência de religião? Que há de mais cruel do que essa simulação de clemência? Segundo qual lei, ó judeus, évos permitido querer o que não vos é permitido fazer? Por qual raciocínio o que conspurca os corpos não fere as almas? Temeis tornar-vos impuros, matando aquele cujo sangue pedistes que fosse derramado sobre vós e sobre vossos filhos. Se a vossa impiedade não consuma todo o crime, deixais o governador julgar segundo seus sentimentos. Mas, mostrando-vos insistentes e violentos até contra ele, não lhe permitis declinar daquilo de que, sob um pretexto mentiroso, vós vos abstendes. Admitamos que Pilatos tenha pecado, fazendo o que não queria; mas para vossa consciência reflui tudo o que vosso furor lhe arrancou. Tal foi também o escrúpulo de vossa observância quando não quisestes que fosse lançado no tesouro do templo aquilo que vos levou aquele que tinha vendido Cristo, porque veláveis para que esse dinheiro manchado de sangue não manchasse o cofre sagrado. De tal coração sai tal hipocrisia? Cai na consciência dos sacerdotes o que não cai no cofre do templo. Rejeita-se o preço desse sangue, que não se teme derramar. Por mais que vos abrigueis à sombra de um artifício, permanece o negócio feito com o traidor, negócio que, como não vos permitia comprar o sangue do justo, não vos permitiria também derramá-lo.

Jesus crucificado

Cedendo, pois, Pilatos aos gritos sediciosos dos judeus, Cristo foi crucificado no lugar chamado Gólgota. Pelo madeiro é levantado o que caiu pelo madeiro, e pela aceitação do fel e do vinagre foi apagado o pecado, do qual o alimento foi a ocasião. Com razão, antes de ser entregue, o Senhor tinha dito: “Quando eu for elevado, atrairei todos a mim”, isto é, tomarei em minhas mãos toda a causa do gênero humano e restabelecerei em sua integridade a natureza outrora perdida. Em mim toda fraqueza será abolida, em mim toda ferida será curada. Ora, não só a paixão sofrida em nossa natureza, mas também o abalo de todo o universo mostraram que Jesus, uma vez levantado, atraiu tudo a si. Porque, enquanto o Criador pendia do patíbulo, a criação inteira gemeu, e todos os elementos sentiram os cravos de sua cruz. Nada permaneceu alheio a esse suplício; foi por ele que Jesus atraiu o céu e a terra para se unirem aos seus sofrimentos e que fendeu as rochas, abriu os túmulos, desligou os infernos e escondeu os raios do sol sob o horror de trevas espessas. Porque o mundo devia esse testemunho ao seu autor, isto é, que, na morte de seu Criador, todas as coisas quisessem acabar-se. Mas Deus conserva às coisas e aos tempos sua ordem e convida nosso coração a pedir a salvação daqueles cujo crime detestamos.

Exortação moral: precaver-se contra os embustes do demônio e de seus agentes

Arrancados assim por tão alto preço e por tão grande mistério ao poder das trevas e libertados dos laços da antiga escravidão, tomai cuidado, caríssimos, para que o diabo não corrompa a integridade de vossas almas mediante algum artifício. Tudo o que vos foi inculcado contra a fé cristã, tudo que vos for aconselhado em oposição aos mandamentos de Deus, tudo isso vem dos enganos do diabo: é ele que, por inúmeros artifícios, se esforça para vos desviar da vida eterna, aproveitando certas ocasiões ligadas à fraqueza humana, para fazer recair nos laços de sua própria morte as almas incautas e negligentes. Lembrem-se, pois, todos aqueles que foram regenerados pela água e pelo Espírito Santo, daquilo a que renunciaram e do empenhamento pelo qual sacudiram o jugo de uma dominação tirânica; que ninguém recorra ao demônio, seja na prosperidade, seja na adversidade. Porque ele é mentiroso desde o começo e é forte somente na arte de enganar, a fim de embair pela ostentação de falsa consciência a ignorância humana e ser agora maligno instigador daqueles dos quais depois será ímprobo acusador. Os anos de nossa vida e as qualidades das ações temporais não dependem da natureza dos elementos nem dos efeitos das estrelas, mas do poder do sumo e verdadeiro Deus, cujo auxílio e misericórdia devemos implorar para todas as coisas que desejamos retamente. Como se o ofendermos — o que não aconteça — nada, fora ele, poderá favorecer-nos, assim, sendo ele propício, nenhuma adversidade nos prejudicará. “Porque, se Deus está conosco, quem estará contra nós? Quem não poupou o seu próprio Filho e o entregou por todos nós, como não nos haverá de agraciar em tudo junto com ele?” O qual vive e reina pelos séculos dos séculos. Amém.

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