A carne de Cristo, mistério e exemplo
A narração evangélica, caríssimos, nos apresentou todo o mistério pascal, e de tal modo penetrou, através do ouvido corporal até o espiritual, que nenhum de nós deixou de recompor os fatos.
O texto da história divinamente inspirada evidenciou como o Senhor Jesus Cristo foi impiedosamente traído, a que juízo foi submetido, a crueldade com que foi crucificado e a glória na qual ressuscitou.
Sinto, porém, o dever de acrescentar a minha palavra. Percebo como vossa expectativa piedosa reclama o que costumo vos dar, e por isso junte-se à solenidade da leitura sagrada, a exortação do sacerdote. Através dos ouvidos dos fiéis que nada de instrutivo devem ignorar, cresça a semente da palavra, a pregação do evangelho, na terra de vosso coração. Removidos os espinhos e abrolhos, sufocantes, brotem livremente e dêem fruto as plantas dos sentimentos piedosos e os germes das vontades retas.
A cruz de Cristo, dada aos mortais para a sua salvação, é mistério e exemplo. Mistério, porque nela se consuma o poder divino; exemplo, porque excita a devoção humana. Livres os homens do jugo do cativeiro, a redenção ainda lhes possibilita o seguimento, a imitação. Se a sabedoria humana se gloria de seus erros, de tal modo que, quem escolhe um mestre segue suas opiniões, seus costumes e todas as suas determinações, qual será nossa comunhão com o nome de Cristo, se não nos unirmos inseparavelmente àquele que é, conforme sua própria declaração: “Caminho, verdade e vida” (Jo 14,6)? Caminho de uma vida santa, Verdade de uma doutrina divina, Vida de felicidade eterna.
O Verbo assume nossa natureza para redimi-la
Tendo caído todo o gênero humano na pessoa de nossos primeiros pais, Deus misericordioso quis socorrer por intermédio de seu unigênito, Jesus Cristo, a criatura feita à sua imagem, de tal modo que fora da natureza não houvesse reparação da mesma e a segunda condição ultrapassasse a dignidade da própria origem.
Teria sido feliz o homem, se não houvesse decaído da condição em que Deus o fez; mais feliz, porém, será se permanecer naquele em que foi refeito. Foi muito ter recebido de Cristo a forma; bem mais é ter em Cristo a substância. No que lhe é próprio recebeu-nos aquela natureza (que se mostra benigna à medida que o quer, sem incorrer em arrependimento e na mutabilidade. Recebeu-nos aquela natureza) que não consumiria o que é seu pelo que é nosso, nem o nosso pelo que é seu. Uniu numa só pessoa a divindade e a humanidade, de modo que, na distribuição de fraquezas e poderes, nem a carne se tornasse inviolável pela divindade, nem a divindade, por causa da carne, pudesse ser passível.
Recebeu-nos aquela natureza que não rompeu o trâmite comum da propagação do gênero humano, porém excluiu-se do contágio do pecado, transmitido a todos os homens. A fraqueza, contudo, e a mortalidade que não são pecado e sim, pena do pecado, foram assumidas pelo Redentor do mundo, como suplício, a fim de dá-las como preço. A transmissão da condenação a todos os homens, em Cristo fez-se mistério de piedade. Ofereceu-se ao exator cruel, livre do débito, e admitiu que as mãos dos judeus, servos do diabo, atormentassem a carne imaculada. Quis ser mortal até à ressurreição a fim de não ser para os que nele cressem insuperável a perseguição, nem a morte terrível. Não fosse incerto o consórcio da glória, pois era indubitável a comunhão da natureza.
Mortos com Cristo, com ele ressuscitados. O Senhor continuamente nos conforta na terra e convida-nos para a glória
Se, portanto, caríssimos, cremos de coração, sem hesitar, o que confessamos com a boca, em Cristo fomos crucificados, fomos mortos, fomos sepultados e também ressuscitamos ao terceiro dia.
Daí dizer o Apóstolo: “Uma vez, pois, que ressuscitastes com Cristo, procurai as coisas lá de cima, onde Cristo está assentado à direita de Deus; interessai-vos pelas coisas lá de cima, não pelas coisas terrenas, desde que vós morrestes, e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus. Quando Cristo, nossa vida, aparecer, então também vós, revestidos de glória, haveis de aparecer com ele” (Cl 3,1-4).
Em vista de saberem os corações dos fiéis como podem, desprezando os apetites mundanos, elevar-se até a sabedoria do alto, o Senhor nos promete sua presença, dizendo: “Eis que eu estou convosco todos os dias até ao fim do mundo” (Mt 28,20). Não foi em vão que o Espírito Santo disse por meio de Isaías: “Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho, a quem será dado o nome de Emanuel, que quer dizer: “Deus conosco” (Is 7,14; Mt 1,23).
Jesus realiza o sentido próprio de seu nome e tendo subido ao céu não abandona os que adotou.
Assentado à di-reita do Pai, habita no corpo todo e aqui embaixo corrobo-ra a paciência, enquanto convida lá de cima para a glória.
Virtude e exemplo da cruz
Não percamos o senso no meio das vaidades, nem trepidemos na adversidade. No primeiro caso, acariciam-se decepções, no segundo agrava-se o labor.
“Dos efeitos da bondade do Senhor está cheia a terra” (Sl 32,5). Assiste-nos em toda a parte a vitória de Cristo. Assim se cumpre a palavra: “Tende confiança! Eu venci o mundo!” (Jo 16,33).
Armemo-nos, pois, incessantemente, com a cruz do Senhor contra as ambições do século, contra as concupiscências da carne, contra os dardos dos hereges. Estaremos sempre em festa pascal se nos abstivermos do velho fermento da malícia (pela sinceridade da verdade).
Nas vicissitudes desta vida, repletas de sofrimentos de toda espécie, lembremo-nos da exortação do Apóstolo a nos instruir: “Tende em vós os mesmos sentimentos que havia em Cristo Jesus. Ora ele, subsistindo em a natureza de Deus, não julgou o ser igual a Deus um bem a que não devesse nunca renunciar; mas despojou-se de si mesmo, tomando a natureza de servo, tornando-se semelhante aos homens e, reconhecido como homem por todo o seu exterior, humilhou-se, fazendo-se obediente até à morte, e à morte de cruz. E por isso Deus o exaltou e lhe deu o nome que está acima de todo o nome, para que, em nome de Jesus, todo joelho se dobre nos céus, na terra e abaixo da terra, e toda a língua proclame que Jesus Cristo é o Senhor, para a glória de Deus Pai” (Fl 2,5-11).
Se entendeis o mistério da grande piedade e compreendeis o que o Filho unigênito de Deus fez pela salvação do gênero humano, tende em vós os mesmos sentimentos de Cristo Jesus, cuja humildade não desprezem os ricos e da qual não se corem os nobres. Não é possível elevar-se a felicidade humana a tal fastígio que se possa envergonhar daquilo que Deus, permanecendo em a natureza de Deus e assumindo a natureza de servo, não julgou indigno de si.
Tender para os bens celestes. Conservar a fé nas duas naturezas de Cristo
Imitai o que Deus fez. Amai o que ele amou. E ao encontrardes em vós a graça de Deus, retribui, amando nele a vossa natureza. Cristo não perdeu as riquezas pela pobreza, não diminuiu a glória pela humildade, nem perdeu a eternidade pela morte. Assim também vós, seguindo-lhe os passos, as pegadas, desprezai os bens terrenos, para vos apossardes dos celestes.
Tomar a cruz é morte aos apetites, extinção dos vícios, fuga da vaidade, abdicação de todo erro. Se o impudico, o luxurioso, o soberbo, o avaro não pode celebrar a Páscoa do Senhor, ninguém é mais alheio a esta festa do que o herege, principalmente aquele que erra acerca da encarnação do Verbo, diminuindo as propriedades da divindade ou eliminado as da carne.
O Filho de Deus é verdadeiro Deus, recebendo do Pai tudo o que o Pai é, sem começo temporal, sem variação e mudança. Não se separa da unidade, não é diverso do onipotente, é Unigênito eterno do Pai eterno. A alma fiel, crendo no Pai e no Filho e no Espírito Santo, na mesma essência da única divindade, não divida a unidade em graus, nem confunda a Trindade numa singularidade. Não basta conhecer o Filho de Deus somente em a natureza do Pai, se não o reconhecermos no que é nosso, a ele que não deixou o que lhe é próprio. O aniquilamento pelo qual passou por causa da restauração humana foi dispensação de misericórdia e não privação de poder. Como pelo plano eterno de Deus “não há no céu outro nome, dado aos homens, pelo qual possamos ser salvos” (At 4,12), o invisível tornou visível a sua substância, o supratemporal fê-la temporal, o impassível, passível. A força, porém, não haveria de se consumir na fraqueza, mas a fraqueza se transformaria em poder incorruptível.
A “passagem” de Cristo é preparação de nosso trânsito à pátria celeste
A festa, que chamamos Páscoa, denominam-na os hebreus “Phase”, isto é, passagem, segundo afirma e atesta o evangelista. “Antes da festa da Páscoa, sabendo Jesus que chegara a hora de passar deste mundo para o Pai” (Jo 13,1). Que natureza efetuaria tal trânsito senão a nossa, uma vez que o Pai está inseparavelmente no Filho e o Filho no Pai? Mas, como o verbo e a carne formam uma só pessoa, a parte assumida não se separa de quem assumiu. A honra daquele que é exaltado chama-se aumento de quem eleva, segundo a supracitada palavra do Apóstolo. “E por isso Deus o exaltou e lhe deu o nome que está acima de todo o nome” (Fl 2,9). Insiste na exaltação da natureza humana que foi assumida. Como na sua paixão, a divindade permanece indivisa, assim é ele co-eterno na glória da divindade.
O próprio Senhor preparava para seus fiéis morte feliz, em participação deste dom inefável, quando, já estando iminente a paixão, suplicava não apenas por seus apóstolos e discípulos, mas também por aqueles que vão crer em mim, por meio de sua palavra, para que todos sejam uma coisa só, assim como tu, ó Pai, estás em mim, e eu em ti, também eles sejam um em nós, a fim de que o mundo creia que tu me enviaste” (Jo 17,20-21).
Não participe da festa pascal quem nega em Cristo a natureza humana
Não têm participação alguma nesta unidade os que negam que em Deus, verdadeiro Filho de Deus, permaneceu a natureza humana. Atacando o mistério salutífero, excluem-se da festa pascal, porque discordando do Evangelho e contradizendo o Símbolo, não podem celebrá-la conosco. Ousem embora usurpar o nome de cristãos, são repelidos por todas as criaturas que têm a Cristo como Cabeça.
Vós, porém, com razão exultais nesta solenidade e alegrai-vos piedosamente, porque não admitindo mentira de permeio com a verdade, não duvidais do nascimento de Cristo segundo a carne, de sua paixão e morte, nem de sua ressurreição corporal. Reconheceis, sem separação alguma da divindade, ser verdadeiro o Cristo nascido do seio da Virgem, verdadeiro no lenho da cruz, verdadeiro no sepulcro da carne, verdadeiro na glória da ressurreição, verdadeiro à direita da majestade paterna. Daí afirmar também o Apóstolo: “Aguardamos o Salvador, o Senhor Jesus Cristo.
Transformará o nosso corpo miserável, tornando-o semelhante ao seu corpo glorioso” (Fl 3,20-21), aquele que vive e reina com o Pai e o Espírito Santo nos séculos dos séculos. Amém.
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