A PAIXÃO DO SENHOR - PARTE 3



Recordação da postagem anterior - Prisão de Jesus 

Caríssimos, em nossa última postagem, percorremos os acontecimentos que precederam a prisão do Senhor; resta-nos agora, com a ajuda da graça de Deus, expor-vos, segundo nossa promessa, o desenrolar da paixão. Ora, o Senhor tinha manifestado, nos termos de sua oração sagrada, que a natureza humana e a natureza divina existiam nele de modo veríssimo e pleníssimo, mostrando de onde lhe vinha o desejo de não sofrer e de onde o de sofrer. Mas, uma vez expulso o tremor próprio da fraqueza e confirmada a grandeza de alma, própria do poder, ele retomou a decisão do plano eterno; ao furor do diabo, que se exercia por meio dos judeus, ele opôs sua condição de servo totalmente isento de pecado; assim a causa de todos seria defendida pelo único no qual se encontrava, sem a falta, a natureza de todos. Os filhos das trevas se precipitaram, pois, sobre a verdadeira luz e, usando tochas e lanternas, não escaparam da noite de sua infidelidade, porque não discerniram o autor da luz. Apoderaram-se daquele que estava preparado para deixar-se prender e levaram aquele que queria ser levado; se ele quisesse resistir, certamente as mãos ímpias não poderiam fazer-lhe nenhum mal, mas a redenção do mundo seria retardada; preservando-se, ele, que devia morrer pela salvação de todos, não teria salvo ninguém. 

Jesus diante de Pilatos; covardia deste 

Consentindo, pois, que o fizessem sofrer tudo o que o furor popular, excitado pelos sacerdotes, ousava, ele é conduzido a Anás, sogro de Caifás, e em seguida novamente a Caifás, reenviado por Anás; depois das calúnias insensatas ditas contra ele, depois das invenções de testemunhas subornadas, ele é levado ao tribunal de Pilatos por uma delegação de sacerdotes. Estes, não se importando com o direito divino, gritam que não têm outro rei senão César, como se, devotados às leis romanas, tivessem reservado todo julgamento ao poder do procurador; na realidade, eles queriam um executor de sua violência, não um árbitro da causa. Com efeito, apresentaram Jesus atado com duras amarras, golpeado por bofetadas, coberto de escarros, condenado antecipadamente pelos gritos; diante de tantos pré-julgamentos, pensavam eles, Pilatos não ousaria absolver aquele cuja morte todos queriam. A instrução do caso mostra que ele não encontrou culpa no acusado e que não teve firmeza em seu julgamento, porque, nessa audiência o juiz condena aquele que declara inocente e entrega ao povo iníquo o sangue do justo, sangue do qual compreendeu por sua própria reflexão e soube pelo sonho de sua mulher que devia abster-se. A ablução das mãos não lava a sujeira de sua alma; não é fazendo escorrer água sobre seus dedos que ele expia o ato cometido com a cumplicidade de seu coração ímpio. É verdade que a falta de Pilatos é ultrapassada pelo crime dos judeus, os quais, aterrorizando-o com o nome de César e ensurdecendo-o com seus gritos raivosos, impeliram-no a cometer seu crime. Não obstante, ele também não escapa à culpa, porque cooperou com a sedição, renunciando ao seu próprio julgamento e assentindo no crime dos outros. 

Furor dos judeus 

Se, pois, caríssimos, Pilatos, vencido pelo furor de um povo implacável, permitiu que Jesus fosse desrespeitado com tantos ultrajes e atormentado com insultos sem medida, se ele o expôs aos olhos dos escribas e dos sacerdotes, flagelado, coroado de espinhos e vestido com uma roupa de derrisão, foi, sem dúvida, porque pensava que assim aplacaria o espírito de seus inimigos: satisfeitos, além de toda medida, seu ódio e sua inveja, eles não pensariam em continuar perseguindo aquele que viam maltratado de vários modos. Mas, como se inflamasse mais a ira daqueles que, aos gritos, pediam a graça da libertação para Barrabás e a pena da cruz para o Cristo, como a multidão, rugindo, dizia a uma só voz: “O seu sangue caia sobre nós e sobre nossos filhos!”, os maus obtiveram, para sua perda, o que exigiam obstinadamente; o profeta tinha atestado isso, dizendo: “Seus dentes são lanças e flechas, sua língua é espada afiada”. Em vão mantiveram eles suas mãos alheias à crucifixão do Senhor de majestade, uma vez que lançaram contra ele os dardos mortais de seus gritos e as setas envenenadas de suas palavras. É sobre vós, judeus, mentirosos e príncipes de um povo sacrílego, que recai todo o peso desse crime; ainda que a crueldade dessa maldade abranja também o procurador e os soldados, todo o conjunto da ação vos acusa. Seja qual for o pecado que Pilatos, por seu julgamento, e a coorte, por sua obediência, tenham cometido no suplício de Cristo, isso vos torna mais dignos da execração do gênero humano, porque a pressão exercida por vossa demência não permitiu que permanecessem inocentes aqueles que não aprovavam vossa injustiça. 

Jesus carrega sua cruz 

O Senhor é, pois, entregue ao arbítrio dos furiosos, os quais, para insultar sua dignidade real, obrigam-no a carregar o instrumento de seu suplício; assim se cumpria o que o profeta Isaías tinha previsto, dizendo: “Um menino nos nasceu, um filho nos foi dado, ele recebeu o poder sobre seus ombros”. Quando o Senhor levava o madeiro da cruz, madeiro que ele ia transformar em cetro de poder, certamente para os ímpios isso era objeto de derrisão, mas para os fiéis manifestava-se nele um grande mistério, porque esse gloriosíssimo vencedor do diabo e onipotente triunfador das forças adversas levava num belo instrumento o troféu de sua vitória e, em seus ombros, com invencível paciência, apresentava o sinal da salvação à adoração de todos os reinos; dir-se-ia que, pelo espetáculo de sua ação, ele fortalecia todos os seus imitadores e lhes dizia: “Aquele que não toma a sua cruz e me segue não é digno de mim”. 

Simão carrega a cruz de Jesus 

Como a multidão ia junto com Jesus para o lugar do suplício, encontraram certo Simão de Cirene e transferiram a cruz para os ombros dele; esse gesto prefigurava a fé dos gentios, para os quais a cruz de Cristo ia tornar-se uma glória, e não um opróbrio. Não foi, portanto, acaso, mas sinal místico se, diante dos judeus obstinados contra Cristo, encontrou-se um estrangeiro que se compadeceu de seus sofrimentos, segundo a palavra do Apóstolo: “Se sofremos com ele, também com ele seremos glorificados”. Não foi um hebreu, um israelita, mas um homem de outra raça que foi submetido à santíssima ignomínia do Salvador. Por essa transferência da cruz, a propiciação proporcionada pelo Cordeiro sem mancha e a plenitude de todos os ritos figurativos passavam da circuncisão para os incircuncisos, dos filhos segundo a carne para os filhos segundo o espírito. Na verdade, como diz o Apóstolo, “nossa páscoa, Cristo, foi imolado”. Oferecendo-se ao Pai em novo e verdadeiro sacrifício de reconciliação, ele foi crucificado não no templo, cuja dignidade já tinha chegado ao fim, nem no recinto da cidade, a qual, em punição de seu crime, ia ser destruída, mas fora, fora do acampamento, para que, terminado o mistério das vítimas antigas, fosse colocada uma nova vítima em novo altar, e a cruz de Cristo fosse esse altar, não mais do templo, mas do mundo. 

Compreender o sentido da cruz 

Eis, pois, caríssimos, Cristo exaltado pela cruz. O olhar de nossa alma não deve impressionar-se somente com o aspecto exterior que se apresentava aos olhos dos ímpios, daqueles aos quais Moisés tinha dito: “Tua vida penderá à tua frente por um fio; ficarás apavorado noite e dia, e não acreditarás mais na vida”. Com efeito, aqueles homens não puderam ver no Senhor crucificado outra coisa senão seu crime e, se tinham algum temor, não era aquele pelo qual a fé verdadeira é justificada, mas aquele que atormenta a má consciência. Quanto a nós, esforcemo-nos para que a nossa inteligência, iluminada pelo Espírito da verdade, receba, com coração puro e livre, a glória da cruz, a qual se irradia para o céu e a terra; que seu olhar interior contemple o sentido destas palavras do Senhor, referentes à iminência da paixão: “É chegada a hora em que será glorificado o Filho do Homem”; e: “Minha alma está agora conturbada. Que direi? Pai, salva-me desta hora. Mas foi precisamente para esta hora que eu vim. Pai, glorifica o teu Filho”. Então, do céu veio a voz do Pai, dizendo: “Eu o glorifiquei e o glorificarei novamente”. Em seguida, dirigindo-se aos assistentes, disse Jesus: “Essa voz não ressoou para mim, mas para vós. É agora o julgamento deste mundo, agora o príncipe deste mundo será lançado fora; e, quando eu for elevado da terra, atrairei todos a mim”. 

Glória da cruz 

Oh! admirável poder da cruz! Oh! glória inefável da paixão! Nela se encontra o tribunal do Senhor, nela o julgamento do mundo, nela o poder do crucificado! Atraíste tudo a ti, Senhor, e, enquanto estendias durante todo um dia tuas mãos para um povo incrédulo e obstinado em contradizer-te, o mundo inteiro recebeu o entendimento para confessar tua majestade! Atraíste tudo a ti, Senhor, porque, para execrar o crime dos judeus, todos os elementos pronunciaram uma sentença unânime, quando os luminares celestes se escureceram, e o dia se mudou em noite, quando a terra foi sacudida por movimentos insólitos, e a criação inteira se recusou a servir aos ímpios! Atraíste tudo a ti, Senhor, porque, rasgado o véu do templo, o Santo dos Santos se retirou de pontífices indignos; a figura se mudou então em verdade; a profecia, em manifestação; a Lei, no Evangelho. Atraíste tudo a ti, Senhor, a fim de que o culto de todas as nações do universo celebre, mediante um sacramento pleno e manifesto, o que se fazia num só templo da Judéia e sob a sombra de figuras. Com efeito, agora a ordem dos levitas é mais ilustre, a dignidade dos anciãos é mais elevada e a unção dos sacerdotes é mais sagrada; porque tua cruz é a fonte de todas as bênçãos, a causa de todas as graças; por ela, da fraqueza os crentes recebem a força; do opróbrio, a glória; da morte, a vida. Agora a diversidade dos sacrifícios carnais está terminada; a oferenda única de teu corpo e de teu sangue consome todas as diferenças das vítimas; porque és tu, o verdadeiro Cordeiro de Deus, que tiras os pecados do mundo e completas em ti todos os mistérios, a fim de que todos os povos formem um só reino como todas as vítimas cedem o lugar a um só sacrifício. 

A morte de Jesus nos dá a vida 

Confessemos, pois, caríssimos, o que a voz do bem-aventurado doutor da nações, o apóstolo Paulo, confessou gloriosamente: “Fiel é esta palavra e digna de toda aceitação: Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores”. Por isso mais admirável é agora a misericórdia de Deus para conosco, porque Cristo morreu não por justos, nem por santos, mas por maus e ímpios. A natureza divina não podia receber o aguilhão da morte, mas, nascendo de nós, tomou o que poderia oferecer por nós. Outrora ele ameaçava a nossa morte com o poder de sua morte, dizendo pela boca do profeta Oséias: “Ó morte, eu serei a tua morte; inferno, serei a tua moradia”. Com efeito, morrendo, ele se sujeitou às leis do túmulo, mas, ressuscitando, aboliu-as e assim interrompeu a continuidade da morte, tornando-a temporal, de eterna que ela era. “Pois assim como todos morrem em Adão, em Cristo todos receberão a vida”. Verifique-se, pois, caríssimos, o que o apóstolo Paulo diz: “A fim de que aqueles que vivem não vivam mais para si, mas para aquele que morreu e ressuscitou por eles”; e como as coisas antigas passaram, e se fez uma realidade nova, ninguém permaneça na antiga vida carnal, mas todos se renovem, dia após dia, progredindo pelo aumento da piedade. Pois, por mais que alguém seja justificado, enquanto está nesta vida tem a possibilidade de ser mais aprovado e melhor. Quem não progride falha, e quem não adquire nada perde alguma coisa. Devemos, pois, correr com os passos da fé, pelas obras de misericórdia, mediante o amor da justiça, para que, celebrando espiritualmente o dia de nossa redenção, “não com velho fermento, nem com fermento de malícia e perversidade, mas com pães ázimos: na pureza e na verdade”, mereçamos ser participantes da ressurreição de Cristo, que vive e reina com o Pai e o Espírito Santo pelos séculos dos séculos. Amém.

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