Instrução tanto para os neófitos, como para os espirituais
O texto das palavras divinas, caríssimos, mostrou-nos plenamente a causa e a razão da solenidade do hoje, qüinquagésimo dia após a ressurreição do Senhor, décimo de sua ascensão, em que, como sabemos, o Espírito Santo, prometido e esperado, se difundiu sobre os discípulos de Cristo.
Visando, porém, a formar os novos filhos da Igreja, devemos acrescentar o obséquio de nossa palavra. Não receamos entediar os espirituais e bem instruídos com o que já conhecem. Só podem lucrar em querer que se instile na mente do maior número possível o que eles aprenderam para proveito próprio. Faça-se, pois, a distribuição dos dons divinos aos corações de todos. Doutos e indoutos não menosprezem o serviço prestado por nossos lábios; aqueles, para provarem amor a que já sabem, estes para mostrarem desejo daquilo que ainda desconhecem. Assista-vos nesta boa disposição a liberalidade daquele de cuja majestade tentamos falar. Faça-vos ele capazes de receber e nos conceda com superabundância o que transmitir, para o bem de toda a Igreja.
Perfeita igualdade nas Pessoas da Santíssima Trindade, embora haja atributos peculiares em cada uma
Quando fixamos o olhar da mente, procurando entender a dignidade do Espírito Santo, não pensemos em algo de diferente da excelência do Pai e do Filho. A essência da Trindade divina em nada entra em discrepância com sua unidade. Eternamente é o Pai genitor de seu Filho, eterno como ele. Eternamente o Filho é gerado, sem tempo, pelo Pai. Eternamente o Espírito Santo é Espírito do Pai e do Filho. Nunca o Pai foi sem o Filho, nunca o Filho sem o Pai, nunca o Pai e o Filho foram sem o Espírito Santo. Excluem-se todos os graus de existência, porque nenhuma Pessoa é anterior, nenhuma posterior. A imutável divindade desta bem-aventurada Trindade é uma na substância, indivisa nas obras, concorde na vontade, idêntica no poder, igual na glória.
Quando a Sagrada Escritura se exprime aparentemente discriminando por fatos ou palavras o que convém a cada uma das Pessoas, a fé católica não se perturba, mas é esclarecida, porque, por palavras ou obras apropriadas insinua-se a verdade da Trindade. Mas, não divida o intelecto o que o ouvido distingue. Efetivamente, fazem-se algumas atribuições ao Pai, outras ao Filho, outras ao Espírito Santo para não errarem os fiéis na confissão da Trindade. Sendo inseparável, não se entenderia que é Trindade, se ao falar não se fizessem distinções. A própria dificuldade de expressão, pois, induz nosso coração à inteligência, e a ciência celeste nos ajuda utilizando nossa própria fraqueza.
Como na divindade do Pai e do Filho e do Espírito Santo não se deve pensar em singularidade ou em diversidade, pode-se simultaneamente apreender, de certo modo, a verdadeira unidade e a verdadeira Trindade, embora não seja possível proferi-las simultaneamente.
O Espírito Santo foi dado também no Antigo Testamento
Está implantada, caríssimos, em nossos corações a fé que nos leva a crer para nossa salvação haver em toda a Trindade juntamente uma só virtude, uma só majestade, uma só substância, indivisível na ação, inseparável no amor, igual no poder, enchendo simultaneamente tudo, tudo contendo ao mesmo tempo. Aquilo que é o Pai, é também o Filho, e também é o Espírito Santo.
A verdadeira divindade em nenhuma das Pessoas pode ser maior ou menor. Deve ser confessada nas Três Pessoas de modo que a Trindade não comporte isolamento e a igualdade conserve a unidade. Mantendo firmemente, como dizia, caríssimos, tal fé, não duvidamos de que ao se difundir o Espírito Santo sobre os discípulos do Senhor no dia de Pentecostes, este fato não constituiu o começo de seus dons, mas foi acréscimo da liberalidade, porque também os patriarcas, os profetas, os sacerdotes e todos os santos dos tempos anteriores foram santificados pelo mesmo Espírito. Sem a graça deste, nunca foi instituído sacramento algum, nem mistério algum celebrado. Sempre a mesma foi a virtude dos carismas, embora não idêntica a medida dos dons.
Dado aos apóstolos, o Espírito Santo implora por nós
Os próprios santos apóstolos, antes da paixão do Senhor, não estavam privados do Espírito Santo, nem o poder, a virtude, estava ausente das obras do Salvador. Ao dar este último aos discípulos o poder de curarem as enfermidades e de expulsarem os demônios (Lc 10,19), concedia-lhes, na verdade, o efeito de seu Espírito, que a impiedade dos judeus negava existir naquele que ordenava aos espíritos imundos, atribuindo os benefícios divinos ao diabo. Daí, merecerem tais blasfêmias com toda a razão a sentença do Senhor: “Todo pecado e blasfêmia serão perdoados ao homem, mas a blasfêmia contra o Espírito Santo não lhe será perdoada. Aquele que falar contra o Filho do homem, ser-lhe-á perdoado; mas a quem falar contra o Espírito Santo, não lhe será perdoado, nem neste século, nem no futuro” (Mt 12,31-32). Evidencia-se que não há remissão dos pecados sem a invocação do Espírito Santo, nem alguém pode sem ele gemer como convém ou orar como deve, segundo diz o Apóstolo: “Não sabemos o que devemos pedir como nos convém; mas o próprio Espírito implora por nós com gemidos inexprimíveis” (Rm 8,26). E: “Ninguém pode dizer ‘Jesus é o Senhor’, senão pelo Espírito Santo” (1Cor 12,3). Nada mais pernicioso, nem mortífero do que ser privado do Espírito Santo, porque nunca merecerá perdão quem é abandonado pelo intercessor.
Por este motivo, caríssimos, em todos os que haviam crido no Senhor Jesus foi infundido o Espírito Santo, e os apóstolos haviam recebido também o poder de perdoar os pecados, quando após sua ressurreição, o Senhor insuflou sobre eles e disse: “Recebei o Espírito Santo; àqueles a quem perdoardes os pecados, ficar-lhes-ão perdoados; àqueles a que os retiverdes, ficar-lhes-ão retidos” (Jo 20,23).
Era, contudo, reservada graça maior e inspiração mais abundante à perfeição que seria conferida aos discípulos. Por ela aceitariam o que antes não haviam recebido e empregariam melhor o dom que haviam acolhido. Dizia, por isso, o Senhor: “Teria ainda muitas coisas a dizer-vos; mas por agora não estais em condições de as compreender. Quando, porém, ele vier, o Espírito da verdade, guiar-vos-á por toda a verdade. É que não vos falará por si mesmo, mas falará de quanto ouve e anunciar-vos-á as coisas vindouras. Ele glorificar-me-á, porque receberá do que é meu para vo-lo anunciar” (Jo 16,12-14).
Não estavam em condições de compreender
Qual a razão por que o Senhor, ao prometer o Espírito Santo aos discípulos, tendo já dito: “Manifestei-vos tudo o que ouvi de meu Pai” (Jo 15,16), acrescentou: “Teria ainda muitas coisas a dizer-vos, mas por agora não estais em condições de as compreender. Quando, porém, ele vier, o Espírito da verdade, guiar-vos-á por toda a verdade” (Jo 16,12-13). Acaso quis o Senhor dar a entender que possuía uma ciência inferior ou que havia ouvido menos da parte do Pai do que o Espírito? Ele é a verdade, e o Pai nada pode dizer, nem o Espírito Santo ensinar sem o Verbo. Por isso foi dito: “Receberá do que é meu” (Jo 16,14), porque ao dar o Pai aquilo que o Espírito Santo recebe, também o concede o Filho. Não devia, portanto, ser insinuada outra verdade, nem pregada outra doutrina.
Importava que aumentasse a capacidade dos discípulos e se multiplicasse a constância daquela caridade que expulsa o temor e não receia o furor dos pesquisadores.
Os apóstolos, repletos da nova abundância do Espírito, começaram a querer com mais ardor e poder com eficácia maior tudo isso, progredindo da ciência de mestres até à tolerância nos sofrimentos; já destemidos diante de qualquer tempestade, pela fé calcavam as ondas do século e a soberba do mundo e desprezando a morte, levavam a todas as nações a verdade do Evangelho.
Refutação dos maniqueus
Não acolhamos, caríssimos, com inteligência tarda ou ouvido distraído as palavras que o Senhor acrescentou: “Falará de quanto ouve e anunciar-vos-á as coisas vindouras” (Jo 16,13). Esta sentença, além de outras expressões da verdade a refutarem a impiedade dos maniqueus, abertamente prostra todas as doutrinas de tal falsidade sacrílega. Eles, para darem a impressão de seguirem um homem grande e sublime, acreditam que o Espírito Santo apareceu em seu mestre Manes e que o Paráclito prometido pelo Senhor não veio antes de nascer esse sedutor de infelizes. De tal modo o Espírito de Deus teria nele habitado que Manes não teria sido outra coisa senão o próprio Espírito que, pelo ministério da voz corporal e da língua teria ensinado toda a verdade a seus discípulos e revelado segredos que os séculos anteriores jamais haviam conhecido. A autoridade da pregação evangélica declara como isto é falso e vão. Manes, pois, é ministro da falsidade diabólica e autor de uma obscena superstição. Sua condenação tornou-se evidente quando, 260 anos após a ressurreição do Senhor, sob o consulado de Probo e Paulino, e grassando já a oitava perseguição contra os cristãos, milhares de mártires provaram com sua vitória a realização da promessa do Senhor: “Quando vos tiverem levado diante deles, não vos dê cuidado o que falareis ou o que haveis de dizer; ser-vos-á dado nesta hora o que haveis de dizer, porque não sois vós que falais, mas o Espírito de vosso Pai que fala em vós” (Mt 10,19-20).
É vão afirmar que a Igreja não possuía o Espírito Santo antes da aparição de Manes
Não podia ser diferido o cumprimento da promessa do Senhor por um intervalo de tempo tão grande, nem aquele Espírito de verdade rejeitado pelo mundo dos ímpios ser contido a efusão septiforme de seus dons, defraudando de sua inspiração tantas gerações da Igreja, até que nascesse o prodigioso porta-bandeira de torpes mentiras, ao qual nem sequer se pode atribuir exígua porção de inspiração divina. Pertence ele a essa parte do mundo que não pode receber o Espírito da verdade.
Repleto do espírito do diabo resistiu ao Espírito de Cristo. Como o ensinamento do Paráclito fez os santos de Deus predizerem o futuro, ele, para que a sucessão dos acontecimentos não condenasse a sua falsidade, recorreu à imprudência de pretéritas fábulas sacrílegas.
Como se a lei santa e as profecias divinamente inspiradas nada nos houvessem ensinado da eternidade do Criador e da ordem da criação, imaginou monstros de mentiras a se repelirem mutuamente ofendendo a Deus e injuriando as naturezas criadas no bem. A quem, enfim, havia de insinuar suas insânias senão aos estultos, inteiramente avessos à luz da verdade que, por causa da cegueira da ignorância ou de apetites vergonhosos, não chegam às coisas sagradas, mas às execráveis, as quais por pudor devemos calar, sendo já bem notórias pela confissão deles próprios.
Quem nega a carne de Cristo, também há de negar que o Espírito foi dado à Igreja
Nenhum de vós, caríssimos, acredite que o autor de tamanha impiedade tenha recebido de algum modo o Espírito Santo. Nada obteve este homem do poder prometido e enviado por Cristo à sua Igreja. Diz o apóstolo são João: “O Espírito ainda não viera, visto que Jesus não ti-nha sido ainda glorificado” (Jo 7,39). A ascensão do Senhor, foi, pois, a razão de ser dado o Espírito.
Necessariamente nega ter sido doado o Espírito quem não afirma que Cristo, verdadeiro homem, foiexaltado à sessão à direita do Pai.
Nós, porém, caríssimos, adotados pela regeneração do Espírito Santo para alcançarmos uma eternidade feliz de alma e de corpo, celebremos a festa sagrada de hoje com obséquio racional e casta alegria, confessando com o apóstolo são Paulo que o Senhor Jesus Cristo, “subindo às alturas, levou cativos consigo, distribuiu dons aos homens” (Sl 67,19; 4,8). Seja o Evangelho de Deus pregado por todas as vozes humanas e “toda a língua proclame que Jesus Cristo é Senhor, para glória de Deus Pai” (Fl 2,11).
O jejum é um dom do Espírito
Acrescentemos, caríssimos, à presente solenidade a devota celebração do jejum, em conseqüência de uma tradição apostólica. Também ele deve ser contado entre os grandes do Espírito Santo. Contra as atrações da carne e as insídias do diabo foram-nos concedidos os auxílios dos jejuns, com os quais, com o socorro de Deus, venceremos todas as tentações.
Jejuemos, pois, quarta e sexta-feira e no sábado celebremos as vigílias junto do bem-aventurado apóstolo Pedro. Que ele patrocine nossas orações a fim de merecermos em tudo a misericórdia de Deus, por nosso Senhor Jesus Cristo, que vive e reina com o Pai e o Espírito Santo, nos séculos dos séculos. Amém.
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