COLETAS - PARTE 4



Advertência contra as artimanhas do demônio que procura anular a fé ou as obras

Caríssimos, a misericórdia e a justiça de Deus nos foram desveladas e explicadas, em sua grande bondade, pelo ensinamento de nosso Senhor Jesus Cristo, quais recompensas ele reservou, desde a criação do mundo para atribuir àqueles que, acreditando nas coisas futuras, já as aceitassem como realizadas.

Nosso Redentor e Salvador sabia, com efeito, quantos erros a falsidade do diabo havia semeado em todo o mundo e que grande parte do gênero humano ele submeteu à inúmeras superstições. Mas, para que a criatura formada à imagem de Deus, por ignorância da verdade, não fique jogada por mais tempo nos abismos da morte eterna, inseriu nas páginas do evangelho a maneira de seu julgamento, a fim de desviar através disso o homem das insídias do mais ardiloso inimigo: porque, a partir daí ninguém mais ignoraria tanto as recompensas que poderiam ser esperadas pelos bons, quanto os castigos que deveriam ser temidos pelos maus. Este provocador e pai do pecado, a princípio, bastante orgulhoso para cair, em seguida invejoso bastante para prejudicar, não tendo permanecido na verdade, pôs toda a sua força na mentira, fazendo sair desta fonte envenenada de suas artimanhas todos os gêneros de decepções: desta forma ele desejou excluir da bondade humana a esperança daquele bem que perdeu pelo próprio orgulho, arrastando para uma condenação comum aqueles com quem ele não podia dividir a reconciliação. Portanto, se um homem, qualquer que seja, ofende a Deus por qualquer tipo de pecado, é porque ele foi arrastado pelo engano deste inimigo e pervertido pela sua malícia. Com efeito, para ele é fácil induzir à qualquer devassidão aqueles que enganou, sob o pretexto da religião. Sabendo, porém, que Deus pode ser negado não só por palavras como também por atos, ele destruiu o amor naqueles nos quais ele não pôde anular a fé; e, uma vez ocupado o campo do seu coração pelas raízes da avareza, privou do fruto das obras aqueles que não pôde privar da proclamação da fé.

Sabendo como será o julgamento, o cristão deverá usar de misericórdia e ser generoso para com os pobres

Caríssimos, por causa das artimanhas do antigo inimigo, a bondade inefável de Cristo quis que soubéssemos como será o julgamento da humanidade inteira, no dia da retribuição, de modo que, oferecendo no tempo presente os remédios legítimos, não recusando oferecer a reparação aos que caíram, permitindo-lhes, àqueles que há muito eram estéreis, pudessem finalmente tornar-se fecundos, ele decide desta forma prevenir o exame decretado por sua justiça, não permitindo jamais que a imagem do julgamento divino se afaste dos olhos do coração. Com efeito, o Senhor virá na glória de sua majestade, como ele mesmo predisse, e, uma multidão incontável de legiões angélicas o acompanhará, radiante de esplendor. Os povos de todas as nações serão reunidos diante do trono de seu poder e todos os homens nascidos ao longo dos séculos sobre a face da terra se prostrarão na presença do juíz. Os justos serão separados dos injustos; os inocentes, dos culpados; os filhos da misericórdia receberão o reino preparado para eles, apuradas as suas boas obras, enquanto será recriminada aos injustos a dureza de sua esterilidade; e os da esquerda, nada tendo a ver com os da direita, serão enviados, pela condenação do juíz todo-poderoso, ao fogo preparado para os tormentos do diabo e de seus anjos: eles serão associados à pena daquele de quem escolheram fazer a vontade.

Portanto, quem não temeria participar destes tormentos eternos? Quem não teria medo dos males que jamais terminarão?

Mas, a severidade uma vez anunciada para que se procure a misericórdia, compete a nós, nos diasatuais, exercer esta misericórdia com generosidade para que cada um, retomando a prática das boas obras, depois de perigosa negligência, torne possível libertar-se desta sentença. Com efeito, é pelo poder do juíz, pela graça do Salvador que o ímpio abandona seus caminhos e que o pecador se afasta do hábito da sua maldade. Que sejam misericordiosos com os pobres aqueles que querem para si o perdão de Cristo. Que estejam prontos para alimentar os pobres, aqueles que desejam chegar à sociedade dos bem-aventurados. Que o homem não seja vil perante outro homem, nem em algum deles seja desprezada aquela natureza que o Criador fez sua. A qual dos necessitados é permitido negar aquilo que Cristo afirma que é dado a ele mesmo? Ajuda-se o companheiro de trabalho e é o
Senhor quem diz obrigado. O alimento dado ao pobre é o preço do reino dos céus e aquele que distribuir os bens temporais, torna-se herdeiro dos eternos. A partir do que se deduz que esses modestos recursos têm um preço tão alto a não ser porque o peso das obras é obtido pela balança da caridade e que quando o homem ama aquilo que agrada a Deus merece ser elevado ao reino daquele de quem ele assume os sentimentos?

O que doa aos pobres alcança libertação da condenação

Caríssimos, é para estas obras, portanto, que a instituição apostólica solicita nossa piedosa atenção neste dia em que a primeira destas santas coletas foi, oportunamente, instituída pela prudência dos Padres: porque outrora os povos pagãos se entregavam em épocas semelhantes a um culto mais supersticioso para com os demônios, eles quiseram que a santa oferenda das nossas esmolas fosse celebrada contra as oferendas dos ímpios. Esta prática, revelando-se frutuosa para o progresso da Igreja, pareceu conveniente torná-la uma instituição.

Assim, nós exortamos vossa santidade a trazer na próxima quarta-feira, para as igrejas de vossas regiões, dentre vossos recursos aquilo que aconselha a possibilidade e a vontade, para a distribuição da misericórdia, para que possais merecer a felicidade da qual gozará sem fim “quem pensa no fraco e no indigente” (Sl 40,1). E para percebê-lo, caríssimos, é preciso estar atento com uma incansável caridade, a fim de que possamos encontrar aquele que esconde sua modéstia ou que retém sua vergonha. Com efeito, existem aqueles que coram ao solicitar publicamente aquilo de que precisam e que preferem sofrer mais, em silêncio, sua indigência do que serem confundidos por um pedido público. É preciso pois, percebê-los e satisfazer suas necessidades ocultas a fim de que eles tenham maior alegria nisto do que com a descoberta de sua pobreza e de seu pudor.

Mas, teremos razão de reconhecer no indigente e no pobre a própria pessoa de nosso Senhor Jesus Cristo que, como diz o Apóstolo, “embora fosse rico, para vos enriquecer com sua pobreza, se fez pobre” (2Cor 8,9). E para que sua presença não nos pareça faltar ele acomodou de tal forma o mistério de sua humildade e de sua glória que nós podemos alimentá-lo nos pobres, ele que nós adoramos como Rei e Senhor, na majestade do Pai: isto nos conseguirá no dia mau a liberação da condenação perpétua, e pelo cuidado dado ao pobre que nós percebemos, seremos admitidos a participar do reino celeste.

Evitar e denunciar os heréticos como parte das boas obras

Caríssimos, para que vossa devoção possa em tudo agradar ao Senhor, exortamo-vos também a usar de esperteza para tornar os maniqueus conhecidos de vossos presbíteros, onde quer que eles se escondam. É prova de grande compromisso desvelar os esconderijos dos ímpios e de combater neles o diabo a quem servem. É preciso, na verdade, caríssimos, que toda a terra e toda a Igreja espalhada em todos os lugares, empunhe contra eles as armas da fé; mas vossa entrega a Deus deve transcender nesta missão, vós que na pessoa de vossos antepassados recebestes o evangelho de Cristo da própria boca dos bem-aventurados apóstolos Pedro e Paulo. Não permitamos que fiquem escondidos homens que não crêem na lei deixada por Moisés, através da qual Deus se mostrou autor do universo; eles contradizem os profetas e o Espírito Santo, ousam rejeitar com impiedade condenável os salmos de Davi cantados fervorosamente pela Igreja inteira; negam o nascimento do Cristo Senhor, segundo a carne; dizem que sua paixão e sua ressurreição foram simuladas, não verdadeiras; o batismo, eles o despojam de toda a graça e eficácia, o batismo de regeneração. Para eles, nada é santo, nada íntegro, nada verdadeiro. É preciso evitá-los para que não façam mal a ninguém; é preciso denunciá-los para que não subsistam em nenhuma parte de nossa cidade.

Aquilo que nós ordenamos, aquilo que nós pedimos, ser-vos-á útil, caríssimos, diante do tribunal do Senhor. Com efeito, é digno que na oferta das esmolas se acrescente também a palma desta boa obra; auxiliando-vos em tudo, o Senhor Jesus Cristo, que vive e reina no século dos séculos. Amém.

COLETAS - PARTE 3



Caríssimos, é próprio da piedade cristã perseverante conservar com fiel devoção as instituições que recebemos da tradição dos Apóstolos. Porque os bem-aventurados discípulos da verdade, transmitindo esta doutrina sob inspiração divina, recomendaram que, todas as vezes que a cegueira dos pagãos os conduzisse com maior intensidade às suas superstições, o povo de Deus perseverasse ainda mais devotamente nas orações e nas obras de caridade. Pois, na verdade, quanto mais os espíritos imundos se alegram com o erro dos pagãos, tanto mais se sentem derrotados pela observância da verdadeira religião e, assim, o crescimento da justiça con-some o autor da maldade.

Contra suas intervenções impiedosas e sacrílegas, para que elas não causassem nenhuma poluição aos corações consagrados a Deus, o divino Mestre dos povos precavia, quando com sua palavra apostólica afirmava: “Não formeis parelha incoerente com os incrédulos. Que participação pode haver entre a justiça e a impiedade? Que união pode haver entre a luz e as trevas?” (2Cor 6,14). E acrescentou, em seguida, servindo-se das palavras do profeta inspirado: “Saí do meio de tal gente, e reparai-vos, diz o Senhor. Não toqueis no que é impuro” (ib. 17).

Foi, pois, muito providencial que, para destruir as ciladas do antigo inimigo, tenha sido instituída na santa Igreja a primeira coleta, no mesmo dia em que os infiéis a serviam ao diabo sob o nome de seus ídolos: queremos, pois, que vossa caridade se reúna na terça-feira em todas as igrejas de vossas regiões, trazendo cada um a oferenda voluntária de suas esmolas. Ainda que a possibilidade de cada um não seja igual neste ano, que sua dedicação seja sem diferença: com efeito, a generosidade dos fiéis não é medida pelo peso do dom, mas pela intensidade da boa vontade. Que os pobres também tenham ganho neste intercâmbio de misericórdia e, que eles, sem serem prejudicados, escolham do pouco que possuem alguma coisa que possam dar aos indigentes. Que o rico seja mais generoso em sua oferta, sem que o pobre se sinta inferior em sua disposição. Na verdade, embora se espere maior rendimento de uma semente maior, pode resultar também de semeadura fraca numerosos frutos da justiça. Com efeito, nosso juíz é justo e veraz: não priva ninguém da recompensa devida aos méritos.

Assim, ele quer que nós cuidemos dos pobres, a fim de que, no exame da retribuição final, o Cristo nosso Deus outorgue a misericórdia prometida aos misericordiosos. Ele que vive e reina com o Pai e o Espírito Santo, pelos séculos dos séculos. Amém.

COLETAS - PARTE 2



Caríssimos, o mandamento que vos ensinamos e no qual exortamos como pastor vos é conhecido e familiar: que estejais comprometidos com o exercício da misericórdia. 

Ainda que isto nunca tenha sido negligenciado por vossa santidade, agora, todavia, deveis vos empenhar com maior presteza e maior generosidade: porque o primeiro dia das coletas, instituição muito salutar que remonta aos santos Padres, exige que cada qual, na medida que prometeu e que lhe é possível, ofereça parte de seus recursos para as necessidades e para a alimentação dos pobres. 

Vós sabeis que, além do batismo da regeneração, no qual foram lavadas as manchas do pecado, nos foi divinamente concedido este remédio para a fraqueza humana: qualquer culpa contraída durante a permanência terrestre é apagada pelas esmolas. 

Com efeito, as esmolas são obras de caridade e sabemos que “a caridade cobre uma multidão de pecados” (1Pd 4,8). Por conseguinte, caríssimos, preparai cuidadosamente, para a próxima segunda-feira, vossas doações voluntárias, a fim de que possais reencontrar multiplicados na vida eterna os bens temporais de que vos despojareis.

COLETAS - PARTE 1


De origem latina, o termo “coleta” indica a colheita ou o recolhimento de dinheiro ou outras espécies entre as pessoas especialmente para fins beneficentes. Aqui, tratamos como um apelo ao exercício da misericórdia, uma exortação para que o cristão esteja comprometido com esse exercício, a se empenhar com maior generosidade na oferta de seus recursos para os necessitados.

Em diversas oportunidades, as Sagradas Escrituras nos ensinam como é grande o mérito e a eficácia das esmolas. Com efeito, é comprovado que cada um de nós alivia sua alma sempre que, movido pela misericórdia, vai ao encontro da indigência do outro. Portanto, caríssimos, a nossa liberalidade deve ser fácil e imediata se pensarmos que cada qual dá a si mesmo aquilo que proporciona aos indigentes. Com efeito, aquele que alimenta o Cristo presente no pobre, constrói seu tesouro no céu. Reconhece, pois, neste fato, a bondade e o favorecimento da ternura divina que desejou te cumular de bens para que, graças a ti, o outro não passe necessidade e pelo serviço de tuas boas obras o indigente não se preocupe demasiado com sua pobreza, e tu próprio sejas libertado dos teus múltiplos pecados. Ó admirável providência e bondade do Criador que, com uma só ação, quis socorrer a um e a outro.
Exorto-vos para que cada um de vós se lembre dos pobres e de vós mesmos e que, na medida de vossas possibilidades, reconheçais o Cristo nos indigentes; ele, com efeito, nos recomendou de tal modo os pobres que declarou ser vestido, acolhido, alimentado neles. Ele, o Cristo, nosso Senhor, que vive e reina com o Pai e o Espírito Santo, pelos séculos dos séculos.

TRANSFIGURAÇÃO DO SENHOR



"Seis dias depois, tomou Jesus consigo a Pedro, e a Tiago, e a João, seu irmão, e os conduziu em particular a um alto monte, E transfigurou-se diante deles; e o seu rosto resplandeceu como o sol, e as suas vestes se tornaram brancas como a luz.
E eis que lhes apareceram Moisés e Elias, falando com ele.
E Pedro, tomando a palavra, disse a Jesus: Senhor, bom é estarmos aqui; se queres, façamos aqui três tabernáculos, um para ti, um para Moisés, e um para Elias.
E, estando ele ainda a falar, eis que uma nuvem luminosa os cobriu. E da nuvem saiu uma voz que dizia: Este é o meu amado Filho, em quem me comprazo; escutai-o.
E os discípulos, ouvindo isto, caíram sobre os seus rostos, e tiveram grande medo.
E, aproximando-se Jesus, tocou-lhes, e disse: Levantai-vos, e não tenhais medo.
E, erguendo eles os olhos, ninguém viram senão unicamente a Jesus." Mateus 17:1-8

A verdadeira fé reconhece Cristo como Deus e homem. A fé de Pedro é recompensada

A leitura evangélica, caríssimos, que através dos ouvidos corporais atingiu o ouvido interior do espírito, chama-nos à inteligência de um grande mistério. Sob a inspiração da graça de Deus, consegui-la-emos com maior facilidade, se tomarmos por objeto de nossas considerações as narrativas que acabamos de ouvir.
O Salvador do gênero humano, Jesus Cristo, lançando os fundamentos daquela fé que converte os ímpios à justiça e restitui os mortos à vida, formava seus discípulos e restitui os mortos à vida, formava seus discípulos por doutrina e milagres a fim de crerem que o mesmo Cristo é o Unigênito de Deus e o Filho do homem. Isolar um do outro não seria proveitoso para a salvação. Perigo igual seria acreditar que o Senhor era só Deus e não homem, ou apenas homem e não Deus. Era preciso confessar ambas as verdades: como em Deus havia verdadeira natureza humana, unia-se à natureza humana a verdadeira divindade.
O Senhor, com a finalidade de confirmar o salutífero conhecimento desta verdade de fé, havia interrogado os seus discípulos, o que acreditavam, o que pensavam dele, em meio das mais diversas opiniões dos demais. O apóstolo Pedro, por revelação do Pai supremo, supera o corpóreo e vai além do humano. Vê com os olhos do espírito o Filho de Deus vivo, confessa a glória da divindade, porque não se detém na substância da carne e do sangue. A sublimidade desta fé agradou tanto ao Senhor que ele o chamou feliz e bem-aventurado e outorgou-lhe a sagrada firmeza da pedra inconcussa, sobre a qual seria fundada a Igreja e contra a qual não prevaleceriam as portas do inferno, nem as leis da morte. Além disso, para ligar ou desligar qualquer causa, não seria ratificado nos céus senão o que sentenciasse Pedro.

Cristo se transfigurou principalmente para comprovar a verdade e o poder de seu corpo

Caríssimo, este agudo entendimento que fora digno de louvor, devia ser instruído acerca do mistério da substância inferior a fim de que a fé do apóstolo, elevada à glória de confessar a divindade de Cristo, não julgasse ser indigno e impróprio de Deus impassível assumir a nossa fraqueza. Não acreditasse ter sido em Cristo glorificada a natureza humana a ponto de não poder mais sofrer o suplício, nem ser dissolvida pela morte.
Ao dizer o Senhor que devia subir a Jerusalém, sofrer muitas coisas dos anciãos, escribas e príncipes dos sacerdotes, ser morto e ressuscitar ao terceiro dia (Mt 16,21 e 20,17-19), são Pedro, esclarecido por luz suprema, no fervor da confissão ardente sobre o Filho de Deus, rejeitou com propositada repulsa, que julgava religiosa, as contumélias dos escárnios e o opróbrio da morte cruel, foi corrigido com benigna repreensão por Jesus e estimulado à ambição de participar de sua paixão.
A subseqüente exortação do Salvador inspirou e ensinou a seus seguidores voluntários a renunciarem a si mesmos e pela esperança dos bens eternos considerarem insignificante qualquer prejuízo temporal. Finalmente, salvaria sua vida quem não temesse perdê-la por Cristo (Mt 16,25).
Jesus não queria que os apóstolos, de todo o coração animados dessa constância e fortaleza, hesitassem de modo algum em aceitar a aspereza da cruz, corassem do suplício de Cristo, ou julgassem vergonhosa a paciência de se sujeitar ele à crueldade da paixão, sem perder a glória do poder. Por isso, “Jesus tomou a Pedro, a Tiago e a João, irmão dele” (Mt 17,1), levou-os a sós a um monte alto e mostrou-lhes o esplendor de sua glória. Entendessem que embora possuía a majestade de Deus, no entanto desconheciam o poder de seu corpo que encobria a divindade.
O Senhor prometera adequada e significativamente que alguns dos discípulos presentes não morreriam antes de verem o Filho do homem vir no seu reino (Mt 16,28), isto é, na glória régia que convinha de modo especial à natureza humana assumida, e ele quis tornar visível a estes três varões.
Aquela visão inefável e inacessível, contudo, que é reservada aos puros de coração na vida eterna, de modo nenhum poderiam ter e contemplar os que ainda se achavam revestidos da carne mortal.

Cristo quis também dissipar o escândalo da cruz e confirmar a esperança da sua Igreja. A transfiguração da Cabeça e dos membros

Revelou, portanto, o Senhor diante de testemunhas escolhidas a sua glória e iluminou de tanto esplendor o aspecto exterior daquele corpo semelhante aos demais que o seu rosto brilhou como o sol e as suas vestes tornaram-se brancas como a neve (Mt 17,2). A principal finalidade desta transfiguração era dissipar nos corações dos discípulos o escândalo da cruz e que a humilhação da paixão voluntária não perturbasse a fé daqueles aos quais fora revelada a excelência da dignidade oculta.
Por igual providência fundamentara-se bem a esperança da santa Igreja. Conhecesse todo o corpo de Cristo que transfiguração lhe haveria de ser concedida um dia e os membros esperassem ser admitidos à participação da honra que previamente refulgia na Cabeça.
Dissera o Senhor a esse respeito, ao falar da majestade de sua vinda: “Então os justos fulgirão como o sol no reino de seu Pai” (Mt 13,43). De modo idêntico o apóstolo Paulo: “Eu estimo, efetivamente, que os sofrimentos do tempo presente não têm proporção alguma com a glória que há de revelar-se em nós” (Rm 8,18). E ainda: “Vós morrestes, e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus. Quando Cristo, nossa vida, aparecer, então também vós, revestidos de glória, haveis de aparecer com ele” (Cl 3,3-4).

A aparição de Moisés e Elias significava o acordo entre o Antigo e o Novo Testamento

Este milagre acrescentou mais um ensinamento a confirmar os apóstolos e elevá-los a um conhecimento completo. Moisés e Elias — a lei e os profetas — apareceram a conversar com o Senhor. Naquele encontro de cinco homens cumpriu-se a palavra de duas ou três testemunhas” (Dt 19,15; Mt 18,16; Jo 8,17; 2Cor 13,1; Hb10,28). O que pode haver de mais estável, mais firme do que a palavra, em cuja pregação ressoa a trombeta tanto do Antigo quanto do Novo Testamento, e concorrem a doutrina evangélica e as provas dos antigos testemunhos? Entram mutuamente em acordo as páginas de ambas as alianças. Mostra manifesta e visivelmente o esplendor da presente glória aquilo que os sinais precedentes, sob o véu dos mistérios, haviam prometido.
Diz são João: “A lei foi dada por meio de Moisés, a graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo” (Jo 1,17). Nele se cumpriram a promessa das figuras proféticas e a razão dos preceitos legais. Demonstra ser verdadeira a profecia por sua presença, e torna possíveis os mandamentos para sua graça.

A ambição de Pedro não era má, mas desordenada

O apóstolo Pedro, animado pelas revelações destes mistérios, desprezando os bens mundanos e entediado dos terrenos, foi de certo modo raptado em espírito pelo anelo dos eternos. Repleto de alegria pelo conjunto da visão, queria habitar com Jesus no lugar onde se regozijava de ver revelada sua glória. Disse: “Senhor, é bom que fiquemos aqui. Se queres, farei aqui três tendas: uma par ti, outra para Moisés e outra para Elias” (Mt 17,4). O Senhor não respondeu a esta sugestão, indicando não ser má, mas desordenada a sua ambição.
O mundo só podia ser salvo pela morte de Cristo. O Senhor com seu exemplo apelava pela fé dos fiéis. Se não podemos duvidar das promessas da bem-aventurança, entendamos, contudo, devermos entre as tentações desta vida, antes pedir a paciência do que a glória, pois a felicidade do reino não pode antecipar-se ao tempo de sofrimento.

Explicação da palavra: Este é o meu Filho amado

“Falava ainda, quando uma nuvem luminosa os envolveu e uma voz saída da nuvem, dizia: ‘Este é o meu Filho amado, no qual ponho as minhas complacências. Ouvi-o’ ” (Mt 17,5). O Pai estava presente no Filho e naquela glória do Senhor que ele moderava para ser suportada pela vista dos discípulos, a essência do genitor não se separava do Unigênito. Mas foi sublinhada a propriedade de cada Pessoa, pois como o esplendor corporal representava à vista o Filho, ao ouvido a voz provinda da nuvem anunciava o Pai.
Os discípulos, ao ouvirem esta voz, “caíram de rosto por terra, e foram tomados de grande medo”, não só do Pai, mas também tremeram perante a majestade do Filho. Com um senso superior entenderam a Divindade única de ambos. Não havendo hesitação na fé, também não houve discriminação no temor. Foi amplo e múltiplo aquele testemunho, mais ouvido pela força das palavras do que pelo som da voz.
Ao dizer o Pai: “Este é o meu Filho amado, no qual ponho as minhas complacências. Ouvi-o”, não é evidente que escutaram: “Este é o meu Filho”, nascido de mim, que está comigo e é extratemporal?
Nem o Genitor é anterior ao Gerado, nem o Gerado posterior ao Genitor.
“Este é o meu Filho” que a divindade de mim não separa, o poder não divide, a eternidade não discerne.
“Este é o meu Filho”, não adotivo, mas próprio; não criado de outrem, mas gerado de mim; não de outra natureza comparável à minha, mas igual a mim, nascido de minha essência.
“Este é o meu Filho, por quem todas as coisas foram feitas, e sem ele, coisa alguma foi feita” (Jo 1,3), porque tudo o que eu faço, ele o faz de modo semelhante, e tudo o que eu opero, ele o faz comigo inseparavelmente e sem diferença. O Filho está no Pai, e o Pai no Filho (Jo 10,38) e a nossa unidade é indivisível. E sendo eu uma Pessoa que gerou, ele outra, a quem gerei, não é lícito pensar dele algo de diverso do que é possível cogitar a meu respeito.
“Este é o meu Filho” que não se prevaleceu da igualdade que tem comigo (Fl 3,6), nem presumiu usurpar. Permanecendo em a natureza de minha glória, a fim de cumprir o desígnio comum de restaurar o gênero humano, condescendeu até unir a imutável Divindade à natureza de servo.

Comentário da expressão: “Ouvi-o”

A este, pois, no qual ponho todas as minhas complacências em todas as coisas e cuja pregação me revela, cuja humildade me glorifica, ouvi-o, sem hesitação, porque ele é a verdade e a vida, ele é minha virtude e sabedoria.
Ouvi-o! Os mistérios da lei prenunciaram. Cantaramno os lábios dos profetas.
Ouvi-o! Redime o mundo em seu sangue, amarra o diabo e toma seus utensílios, destrói o documento do pecado e rompe o pacto da prevaricação.
Ouvi-o! Ele abre o caminho do céu, e pelo suplício da cruz prepara-vos a ascensão ao reino.
Por que receais a redenção? Por que vos atemoriza serdes libertados das feridas? Faça-se o que, segundo seu beneplácito, Cristo quer. Rejeitai o medo carnal. Armai-vos da constância fiel. É indigno receardes na paixão do Salvador o sofrimento que por seu dom não temeis no fim que vos espera.

Este testemunho do Pai robustece a todos, apesar da própria fraqueza

Tudo isso, caríssimos, foi dito não só para a utilidade daqueles que as ouviram com os próprios ouvidos; mas, a Igreja inteira aprendeu o que viram com os próprios olhos os três apóstolos e transmitiram de sua audição.
Confirme-se, segundo a pregação do sacratíssimo Evangelho, a fé de todos. Ninguém se envergonhe da cruz de Cristo, pela qual o mundo foi remido.
Ninguém tema sofrer pela justiça ou desconfie da retribuição prometida.
Pelo labor se passa ao repouso, pela morte se transita para a vida.
Uma vez que Cristo assumiu toda a fraqueza de nossa humanidade, se permanecermos na confissão e no amor a ele, venceremos como ele venceu, e receberemos o que prometeu. Na prática dos mandamentos, ou no suportar as adversidades, deve ressoar sempre aos nossos ouvidos a acima mencionada voz do Pai que dizia: “Este é meu Filho amado, no qual ponho minhas complacências. Ouvi-o! Ele que vive e reina com o Pai e o Espírito Santo nos séculos dos séculos. Amém”.

PENTECOSTES - PARTE 3


Superabundância de dons

A festa de hoje, caríssimos, celebrada em todo o orbe terreste, foi consagrada pela vinda do Espírito Santo que, após a ressurreição do Senhor, no qüinquagésimo dia, conforme era esperado, desceu sobre os apóstolos e sobre o povo fiel (At 2,1). Era esperado porque prometera o Senhor Jesus que haveria de vir (Lc 24,49; 41,4), não para começar a fazer dos santos a sua morada, mas a fim de inflamar os corações que já lhe eram sagrados com maior fervor e inundá-los mais abundantemente. Havia de cumulá-los de seus dons e não apenas iniciar a doação. Não era, pois, obra nova, mas liberalidade mais rica.
A majestade do Espírito Santo jamais se separa da onipotência do Pai e do Filho e as disposições universais do governo divino provêm da providência da Trindade toda. Uma só é a benignidade da misericórdia, uma a severidade da justiça. Nada se divide na ação, quando nada diverge na vontade.
Aquilo que o Pai ilumina, ilumina-o também o Filho, ilumina o Espírito Santo. Embora seja uma a Pessoa enviada, outra a que envia e outra a que promete, simultaneamente se nos manifestam a unidade e a Trindade. Se a essência possui a igualdade, sem admitir isolamento, entenda-se ser idêntica à substância, mas distinguirem-se as Pessoas.

Atribuições na obra de nossa redenção

Dispositivo de nossa redenção e razão de nossa salvação é realizar o Pai certas coisas, outras o Filho e outras propriamente o Espírito Santo, salva a cooperação da inseparável divindade.
Se o homem, criado à imagem e semelhança de Deus (Gn 1,26), houvesse permanecido na dignidade de sua natureza, se não tivesse sido enganado pela fraude diabólica, nem se desviado, pela concupiscência, da lei que lhe fora imposta, o Criador do mundo não se teria feito criatura, o sempiterno não se teria sujeitado ao tempo, nem Deus Filho, igual a Deus Pai, teria assumido a natureza de servo e a semelhança da carne de pecado. Mas, uma vez que “pela inveja do demônio a morte entrou no mundo” (Sb 2,24) e o cativeiro humano não poderia ser abolido a não ser que defendesse nossa causa aquele que, sem prejuízo de sua majestade, far-se-ia verdadeiro homem, sendo o único a não contrair o contágio do pecado, a misericórdia da Trindade distribuiu entre si a obra de nossa restauração, de modo que o Pai fosse aplacado, o Filho aplacasse, o Espírito Santo inflamasse.
Era preciso ainda que também fizessem alguma coisa em seu próprio benefício os que haveriam de se salvar e convertidos de coração ao Redentor, escapassem da dominação do inimigo, porque, como disse o Apóstolo: “Deus enviou aos nossos corações o Espírito de seu Filho, que clama: ‘Abba! Pai!’ (Gl 4,6). “Onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade” (2Cor 3,17). E, “ninguém pode dizer: ‘Jesus é o Senhor’, senão pelo Espírito Santo” (1Cor 12,3).

Em nada são atingidas a igualdade e a consubstancialidade

Se, portanto, caríssimos, orientados pela graça, conhecemos com fé e sabedoria o que em nossa restauração atribui-se propriamente ao Pai, e ao Filho e ao Espírito Santo, ou em comum às Três Pessoas, aceitaremos, sem dúvida, o que foi feito humilde e corporalmente em nosso favor, sem nada pensarmos de indigno sobre a glória da única e mesma Trindade. Embora espírito algum seja capaz de compreender a Deus, nenhuma língua de discorrer sobre ele, no entanto, por mais que o intelecto humano atinja acerca da essência da divindade paterna, se não pensar simultaneamente o mesmo de seu Unigênito ou do Espírito Santo, não é segundo a piedade que apreende, mas carnalmente demaistem o senso obscurecido e perde até o que parecia raciocinar de modo correto sobre o Pai.
Abandona toda a Trindade quem não sustentar que nela há unidade. Não pode, absolutamente, ser um o que difere por qualquer desigualdade.

Nada de semelhante na criação. Igualdade na Trindade

Quando, portanto, para confessar o Pai, o Filho e o Espírito Santo aguçamos a mente, repilamos para longe do espírito as realidades visíveis e as idades das naturezas temporais; para longe, os corpos que ocupam lugar e os lugares destinados aos corpos. Afaste-se do coração o que se distende no espaço ou se encerra dentro de limites, tudo o que não está sempre nem totalmente em toda a parte. O conceito de divindade da Trindade não inclua distância, nem procure graus; e quem pensar a respeito de Deus algo de mais adequado, não ouse negá-lo de uma das Pessoas, como se fosse mais honroso atribuí-lo ao Pai e não ao Filho e ao Espírito Santo.
Não é piedade preferir o Pai ao Unigênito. Ofensa infligida ao Filho é injúria feita ao Pai. O que se suprime em um, a ambos se subtrai. Comum é neles a eternidade e a divindade. Não se considere inferior a si próprio, ou se melhorou por adquirir para si um ser que antes não era seu.

Alegria dos discípulos por causa da ascensão

Disse, em verdade, o Senhor Jesus a seus discípulos, conforme foi proclamado na leitura evangélica: “Se me amásseis, alegrar-vos-íeis por eu ir ao Pai, porque o Pai é maior do que eu” (Jo 14,28). Mas, aqueles ouvidos que ouviram com maior freqüência: “Eu e o Pai somos uma só coisa” (Jo 10,30) e ainda: “Quem me vê, vê também o Pai” (Jo 14,9), entenderam-no sem estabelecer diferenças na divindade e não referiram a passagem àquela essência que sabiam ser com o Pai eterna e da mesma natureza. Aqui se indica a elevação do homem na encarnação do Verbo também aos santos apóstolos que, perturbados com o anúncio da partida do Senhor, são estimulados a uma eterna alegria por causa do acréscimo de honra à sua pessoa: “Se me amásseis, alegrar-vos-íeis por eu ir ao Pai” (ib. 28), isto é, se vísseis com perfeita ciência a glória que vos é conferida, porque eu, gerado de Deus Pai, também nasci como homem de uma mãe, e invisível como sou, mostrei-me visível, eterno na natureza de Deus, assumi a natureza de servo, havíeis de alegrar-vos “por eu ir ao Pai”.
Tudo isto vos presta esta ascensão a vós e a humilde condição de vossa natureza em mim é exaltada acima de todos os céus, até ser posta à direita do Pai. Eu, porém, que sou com o Pai o que o Pai é, em si mesmo, permaneço inseparável do genitor e assim, vindo de junto dele até vós, dele não me aparto, como também, voltando a ele, não vos deixo. Alegrai-vos, portanto, “por eu ir ao Pai, porque o Pai é maior do que eu”.
Uni-vos a mim e tornei-me filho do homem a fim de que possais ser filhos de Deus. Daí, embora eu seja um, possuindo ambas as naturezas, enquanto me conformo à vossa, sou menor que o Pai; enquanto, porém, não me separo do Pai, sou maior do que eu mesmo. A natureza, pois, que é menor que o Pai, vá ao Pai, para que esteja a carne, onde o Verbo sempre está.
Numa fé única, a Igreja católica confessa ser menor segundo a humanidade quem ela acredita ser igual ao Pai pela divindade.

Três Pessoas, uma essência, uma operação

Seja desprezada, portanto, caríssimos, a vã e cega malícia herética que se ilude com a interpretação errônea desta sentença. Tendo dito o Senhor “Tudo quan- to o Pai tem é meu” (Jo 16,15), ela não compreende que está tirando ao Pai tudo o que ousa negar ao Filho e assim erra em relação à humanidade, julgando faltar ao Unigênito os bens paternos, uma vez que assumiu os nossos.
A misericórdia de Deus não lhe diminui o poder, nem a reconciliação da criatura amada torna-seimperfeição da glória eterna.
Aquilo que o Pai possui tem-no igualmente o Filho, e o que tem o Pai e o Filho, também o possui o Espírito Santo, porque a Trindade toda simultaneamente é um só Deus.
Não descobriu este dogma de fé a sabedoria terrena, nem foi a opinião humana que a tal crença persuadiu. Ensinou-o o próprio Filho unigênito, o próprio Espírito Santo o instituiu. Deste último, nada se pense de diferente do Pai e do Filho, porque apesar de não ser o Pai, nem o Filho, no entanto não se separa do Pai e do Filho. Ele é na Trindade uma Pessoa, mas possui uma só substância na divindade do Pai e do Filho. Esta substância tudo enche, tudo contém, e com o Pai e o Filho governa o universo. À qual são tributadas honra e glória nos séculos dos séculos. Amém.

PENTECOSTES - PARTE 2


Instrução tanto para os neófitos, como para os espirituais

O texto das palavras divinas, caríssimos, mostrou-nos plenamente a causa e a razão da solenidade do hoje, qüinquagésimo dia após a ressurreição do Senhor, décimo de sua ascensão, em que, como sabemos, o Espírito Santo, prometido e esperado, se difundiu sobre os discípulos de Cristo.
Visando, porém, a formar os novos filhos da Igreja, devemos acrescentar o obséquio de nossa palavra. Não receamos entediar os espirituais e bem instruídos com o que já conhecem. Só podem lucrar em querer que se instile na mente do maior número possível o que eles aprenderam para proveito próprio. Faça-se, pois, a distribuição dos dons divinos aos corações de todos. Doutos e indoutos não menosprezem o serviço prestado por nossos lábios; aqueles, para provarem amor a que já sabem, estes para mostrarem desejo daquilo que ainda desconhecem. Assista-vos nesta boa disposição a liberalidade daquele de cuja majestade tentamos falar. Faça-vos ele capazes de receber e nos conceda com superabundância o que transmitir, para o bem de toda a Igreja.

Perfeita igualdade nas Pessoas da Santíssima Trindade, embora haja atributos peculiares em cada uma

Quando fixamos o olhar da mente, procurando entender a dignidade do Espírito Santo, não pensemos em algo de diferente da excelência do Pai e do Filho. A essência da Trindade divina em nada entra em discrepância com sua unidade. Eternamente é o Pai genitor de seu Filho, eterno como ele. Eternamente o Filho é gerado, sem tempo, pelo Pai. Eternamente o Espírito Santo é Espírito do Pai e do Filho. Nunca o Pai foi sem o Filho, nunca o Filho sem o Pai, nunca o Pai e o Filho foram sem o Espírito Santo. Excluem-se todos os graus de existência, porque nenhuma Pessoa é anterior, nenhuma posterior. A imutável divindade desta bem-aventurada Trindade é uma na substância, indivisa nas obras, concorde na vontade, idêntica no poder, igual na glória.
Quando a Sagrada Escritura se exprime aparentemente discriminando por fatos ou palavras o que convém a cada uma das Pessoas, a fé católica não se perturba, mas é esclarecida, porque, por palavras ou obras apropriadas insinua-se a verdade da Trindade. Mas, não divida o intelecto o que o ouvido distingue. Efetivamente, fazem-se algumas atribuições ao Pai, outras ao Filho, outras ao Espírito Santo para não errarem os fiéis na confissão da Trindade. Sendo inseparável, não se entenderia que é Trindade, se ao falar não se fizessem distinções. A própria dificuldade de expressão, pois, induz nosso coração à inteligência, e a ciência celeste nos ajuda utilizando nossa própria fraqueza.
Como na divindade do Pai e do Filho e do Espírito Santo não se deve pensar em singularidade ou em diversidade, pode-se simultaneamente apreender, de certo modo, a verdadeira unidade e a verdadeira Trindade, embora não seja possível proferi-las simultaneamente.

O Espírito Santo foi dado também no Antigo Testamento

Está implantada, caríssimos, em nossos corações a fé que nos leva a crer para nossa salvação haver em toda a Trindade juntamente uma só virtude, uma só majestade, uma só substância, indivisível na ação, inseparável no amor, igual no poder, enchendo simultaneamente tudo, tudo contendo ao mesmo tempo. Aquilo que é o Pai, é também o Filho, e também é o Espírito Santo.
A verdadeira divindade em nenhuma das Pessoas pode ser maior ou menor. Deve ser confessada nas Três Pessoas de modo que a Trindade não comporte isolamento e a igualdade conserve a unidade. Mantendo firmemente, como dizia, caríssimos, tal fé, não duvidamos de que ao se difundir o Espírito Santo sobre os discípulos do Senhor no dia de Pentecostes, este fato não constituiu o começo de seus dons, mas foi acréscimo da liberalidade, porque também os patriarcas, os profetas, os sacerdotes e todos os santos dos tempos anteriores foram santificados pelo mesmo Espírito. Sem a graça deste, nunca foi instituído sacramento algum, nem mistério algum celebrado. Sempre a mesma foi a virtude dos carismas, embora não idêntica a medida dos dons.

Dado aos apóstolos, o Espírito Santo implora por nós

Os próprios santos apóstolos, antes da paixão do Senhor, não estavam privados do Espírito Santo, nem o poder, a virtude, estava ausente das obras do Salvador. Ao dar este último aos discípulos o poder de curarem as enfermidades e de expulsarem os demônios (Lc 10,19), concedia-lhes, na verdade, o efeito de seu Espírito, que a impiedade dos judeus negava existir naquele que ordenava aos espíritos imundos, atribuindo os benefícios divinos ao diabo. Daí, merecerem tais blasfêmias com toda a razão a sentença do Senhor: “Todo pecado e blasfêmia serão perdoados ao homem, mas a blasfêmia contra o Espírito Santo não lhe será perdoada. Aquele que falar contra o Filho do homem, ser-lhe-á perdoado; mas a quem falar contra o Espírito Santo, não lhe será perdoado, nem neste século, nem no futuro” (Mt 12,31-32). Evidencia-se que não há remissão dos pecados sem a invocação do Espírito Santo, nem alguém pode sem ele gemer como convém ou orar como deve, segundo diz o Apóstolo: “Não sabemos o que devemos pedir como nos convém; mas o próprio Espírito implora por nós com gemidos inexprimíveis” (Rm 8,26). E: “Ninguém pode dizer ‘Jesus é o Senhor’, senão pelo Espírito Santo” (1Cor 12,3). Nada mais pernicioso, nem mortífero do que ser privado do Espírito Santo, porque nunca merecerá perdão quem é abandonado pelo intercessor.
Por este motivo, caríssimos, em todos os que haviam crido no Senhor Jesus foi infundido o Espírito Santo, e os apóstolos haviam recebido também o poder de perdoar os pecados, quando após sua ressurreição, o Senhor insuflou sobre eles e disse: “Recebei o Espírito Santo; àqueles a quem perdoardes os pecados, ficar-lhes-ão perdoados; àqueles a que os retiverdes, ficar-lhes-ão retidos” (Jo 20,23).
Era, contudo, reservada graça maior e inspiração mais abundante à perfeição que seria conferida aos discípulos. Por ela aceitariam o que antes não haviam recebido e empregariam melhor o dom que haviam acolhido. Dizia, por isso, o Senhor: “Teria ainda muitas coisas a dizer-vos; mas por agora não estais em condições de as compreender. Quando, porém, ele vier, o Espírito da verdade, guiar-vos-á por toda a verdade. É que não vos falará por si mesmo, mas falará de quanto ouve e anunciar-vos-á as coisas vindouras. Ele glorificar-me-á, porque receberá do que é meu para vo-lo anunciar” (Jo 16,12-14).

Não estavam em condições de compreender

Qual a razão por que o Senhor, ao prometer o Espírito Santo aos discípulos, tendo já dito: “Manifestei-vos tudo o que ouvi de meu Pai” (Jo 15,16), acrescentou: “Teria ainda muitas coisas a dizer-vos, mas por agora não estais em condições de as compreender. Quando, porém, ele vier, o Espírito da verdade, guiar-vos-á por toda a verdade” (Jo 16,12-13). Acaso quis o Senhor dar a entender que possuía uma ciência inferior ou que havia ouvido menos da parte do Pai do que o Espírito? Ele é a verdade, e o Pai nada pode dizer, nem o Espírito Santo ensinar sem o Verbo. Por isso foi dito: “Receberá do que é meu” (Jo 16,14), porque ao dar o Pai aquilo que o Espírito Santo recebe, também o concede o Filho. Não devia, portanto, ser insinuada outra verdade, nem pregada outra doutrina.
Importava que aumentasse a capacidade dos discípulos e se multiplicasse a constância daquela caridade que expulsa o temor e não receia o furor dos pesquisadores.
Os apóstolos, repletos da nova abundância do Espírito, começaram a querer com mais ardor e poder com eficácia maior tudo isso, progredindo da ciência de mestres até à tolerância nos sofrimentos; já destemidos diante de qualquer tempestade, pela fé calcavam as ondas do século e a soberba do mundo e desprezando a morte, levavam a todas as nações a verdade do Evangelho.

Refutação dos maniqueus

Não acolhamos, caríssimos, com inteligência tarda ou ouvido distraído as palavras que o Senhor acrescentou: “Falará de quanto ouve e anunciar-vos-á as coisas vindouras” (Jo 16,13). Esta sentença, além de outras expressões da verdade a refutarem a impiedade dos maniqueus, abertamente prostra todas as doutrinas de tal falsidade sacrílega. Eles, para darem a impressão de seguirem um homem grande e sublime, acreditam que o Espírito Santo apareceu em seu mestre Manes e que o Paráclito prometido pelo Senhor não veio antes de nascer esse sedutor de infelizes. De tal modo o Espírito de Deus teria nele habitado que Manes não teria sido outra coisa senão o próprio Espírito que, pelo ministério da voz corporal e da língua teria ensinado toda a verdade a seus discípulos e revelado segredos que os séculos anteriores jamais haviam conhecido. A autoridade da pregação evangélica declara como isto é falso e vão. Manes, pois, é ministro da falsidade diabólica e autor de uma obscena superstição. Sua condenação tornou-se evidente quando, 260 anos após a ressurreição do Senhor, sob o consulado de Probo e Paulino, e grassando já a oitava perseguição contra os cristãos, milhares de mártires provaram com sua vitória a realização da promessa do Senhor: “Quando vos tiverem levado diante deles, não vos dê cuidado o que falareis ou o que haveis de dizer; ser-vos-á dado nesta hora o que haveis de dizer, porque não sois vós que falais, mas o Espírito de vosso Pai que fala em vós” (Mt 10,19-20).

É vão afirmar que a Igreja não possuía o Espírito Santo antes da aparição de Manes

Não podia ser diferido o cumprimento da promessa do Senhor por um intervalo de tempo tão grande, nem aquele Espírito de verdade rejeitado pelo mundo dos ímpios ser contido a efusão septiforme de seus dons, defraudando de sua inspiração tantas gerações da Igreja, até que nascesse o prodigioso porta-bandeira de torpes mentiras, ao qual nem sequer se pode atribuir exígua porção de inspiração divina. Pertence ele a essa parte do mundo que não pode receber o Espírito da verdade.
Repleto do espírito do diabo resistiu ao Espírito de Cristo. Como o ensinamento do Paráclito fez os santos de Deus predizerem o futuro, ele, para que a sucessão dos acontecimentos não condenasse a sua falsidade, recorreu à imprudência de pretéritas fábulas sacrílegas.
Como se a lei santa e as profecias divinamente inspiradas nada nos houvessem ensinado da eternidade do Criador e da ordem da criação, imaginou monstros de mentiras a se repelirem mutuamente ofendendo a Deus e injuriando as naturezas criadas no bem. A quem, enfim, havia de insinuar suas insânias senão aos estultos, inteiramente avessos à luz da verdade que, por causa da cegueira da ignorância ou de apetites vergonhosos, não chegam às coisas sagradas, mas às execráveis, as quais por pudor devemos calar, sendo já bem notórias pela confissão deles próprios.

Quem nega a carne de Cristo, também há de negar que o Espírito foi dado à Igreja

Nenhum de vós, caríssimos, acredite que o autor de tamanha impiedade tenha recebido de algum modo o Espírito Santo. Nada obteve este homem do poder prometido e enviado por Cristo à sua Igreja. Diz o apóstolo são João: “O Espírito ainda não viera, visto que Jesus não ti-nha sido ainda glorificado” (Jo 7,39). A ascensão do Senhor, foi, pois, a razão de ser dado o Espírito.
Necessariamente nega ter sido doado o Espírito quem não afirma que Cristo, verdadeiro homem, foiexaltado à sessão à direita do Pai.
Nós, porém, caríssimos, adotados pela regeneração do Espírito Santo para alcançarmos uma eternidade feliz de alma e de corpo, celebremos a festa sagrada de hoje com obséquio racional e casta alegria, confessando com o apóstolo são Paulo que o Senhor Jesus Cristo, “subindo às alturas, levou cativos consigo, distribuiu dons aos homens” (Sl 67,19; 4,8). Seja o Evangelho de Deus pregado por todas as vozes humanas e “toda a língua proclame que Jesus Cristo é Senhor, para glória de Deus Pai” (Fl 2,11).

O jejum é um dom do Espírito

Acrescentemos, caríssimos, à presente solenidade a devota celebração do jejum, em conseqüência de uma tradição apostólica. Também ele deve ser contado entre os grandes do Espírito Santo. Contra as atrações da carne e as insídias do diabo foram-nos concedidos os auxílios dos jejuns, com os quais, com o socorro de Deus, venceremos todas as tentações.
Jejuemos, pois, quarta e sexta-feira e no sábado celebremos as vigílias junto do bem-aventurado apóstolo Pedro. Que ele patrocine nossas orações a fim de merecermos em tudo a misericórdia de Deus, por nosso Senhor Jesus Cristo, que vive e reina com o Pai e o Espírito Santo, nos séculos dos séculos. Amém.

PENTECOSTES - PARTE 1



Pentecostes em o Novo e Antigo Testamento

Os corações de todos os católicos, caríssimos, reconhecem que a solenidade de hoje merece ser venerada entre as principais festas. Sem dúvida, inspira grande reverência este dia, consagrado pelo Espírito Santo com o excelente milagre do dom que ele fez de si mesmo. Décimo desde aquele em que o Senhor subiu acima de todos os céus para se assentar à direita de Deus Pai, refulge como qüinquagésimo em seu ponto de partida, a ressurreição, encerrando grandes mistérios dos antigos e dos novos sacramentos, que demonstraram manifestamente ter sido a graça prenunciada pela lei e a lei cumprida pela graça.
Outrora, ao povo hebreu libertado do Egito, no qüinquagésimo dia após a imolação do cordeiro, a Lei foi dada no monte Sinai (Êx 19,17). Assim, no qüinquagésimo dia, após a paixão de Cristo na qual foi morto o verdadeiro Cordeiro de Deus, desceu sobre os apóstolos e o povo fiel o Espírito Santo (At 2,3). Reconheça, pois, facilmente o cristão zeloso terem os fatos iniciais do Antigo Testamento servido de começo ao Evangelho e haver sido a segunda Aliança travada pelo mesmo Espírito que instituíra a primeira.

Instruídos de modo admirável os discípulos

Atesta a história dos apóstolos: “Ao chegar o dia de Pentecostes, achavam-se todos eles reunidos no mesmo lugar, e veio subitamente do céu um ruído semelhante a um sopro de vento impetuoso, que encheu toda a casa onde eles habitavam. E apareceram-lhes línguas divididas à maneira de fogo, e repousou uma sobre cada um deles; e ficaram todos eles cheios do Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas, segundo o Espírito Santo lhes concedia que se exprimissem” (At 2,1-4).
Como é veloz a palavra da sabedoria! Quão depressa se aprende o que é ensinado quando Deus é o mestre! Não foi preciso haver tradução para ser entendida, nem prática para ser utilizada, nem tempo para ser estudada. O Espírito da verdade soprou onde quis (Jo 3,8), e as línguas próprias de cada povo, tornaram-se comuns, nos lábios da Igreja.
Foi nesse dia, pois, que começou a ressoar a trombeta da pregação evangélica; desde então houve a chuva de carismas e rios de bênçãos a irrigarem o deserto e a terra árida porque a fim de renovar a face da terra “o Espírito de Deus sobre as águas adejava” (Gên 1,2) e para dissipar as antigas trevas coruscaram os fulgores de uma nova luz, quando pelo esplendor das línguas brilhantes, foi concebido o verbo luminoso do Senhor, palavra de fogo, possuidora de eficácia para iluminar e de força para queimar, despertando o entendimento e consumindo o pecado.

Perfeita igualdade das três Pessoas

Embora, caríssimos, a própria forma de realização tenha sido admirável, e não se duvida que naquele uníssono exultante de todas as vozes humanas tenha estado presente a majestade do Espírito Santo, ninguém pense que a sua substância divina tenha aparecido na forma que os olhos corporais puderem perceber. A natureza invisível, comum também ao Pai e ao Filho, mostrou pelo sinal escolhido a qualidade de seu dom e de sua obra. Manteve, porém, oculta a propriedade de sua essência em sua divindade, pois, do mesmo modo que nem ao Pai, nem ao Filho, igualmente nem ao Espírito Santo pode o olhar humano atingir.
Na Trindade divina nada é dessemelhante, nada desigual. Tudo quanto se pode cogitar sobre aquela substância não difere em poder, glória ou eternidade. Quanto às propriedades pessoais, uma é a Pessoa do Pai, outra a do Filho e outra a do Espírito Santo, contudo não é diferente a divindade,nem a natureza diversa. Se, na verdade, do Pai é o Filho unigênito, e o Espírito Santo é espírito do Pai e do Filho, não porém como qualquer criatura é do Pai e do Filho, ele o é enquanto com ambos vive e pode e subsiste eternamente naquilo que é o Pai e o Filho.
O Senhor, por isso, na véspera de sua paixão, prometendo aos seus discípulos a vinda do Espírito Santo, disse: “Teria ainda muitas coisas a dizer-vos, mas por agora não estais em condições de as compreender. Quando, porém, ele vier, o Espírito da verdade, guiar-vos-á por toda a verdade. É que não vos falará por si mesmo, mas falará de quanto ouve e enunciar-vos-á as coisas vindouras. Ele glorificar-me-á porque receberá do que é meu, para vo-lo anunciar. Tudo quanto o Pai tem é meu; por isso eu disse que ele receberá do que é meu, para vo-lo anunciar” (Jo 16,12-15).
O Pai, portanto, não possui algo de diverso do Filho, ou o Pai e o Filho do Espírito Santo. Mas, tudo o que tem o Pai, tem-no igualmente o Filho, tem-no o Espírito Santo. Sempre na Trindade houve esta comunhão, porque nela ter tudo é o mesmo que sempre existir. Não se pense a seu respeito em qualquer tempo, grau ou diferença; e se ninguém pode explicar o que Deus é, ninguém ouse afirmar dele coisa diversa do que é. É mais desculpável não falar da natureza inefável o que ela merece do que asseverar o que lhe é contrário. Tudo o que os corações piedosos puderem conceber sobre a eterna e imutável glória do Pai, entendam-no inseparavel-mente e sem distinção também do Filho e do Espírito Santo.
Confessamos, portanto, que esta bem-aventurada Trindade é um só Deus, porque nas Três Pessoas não há diferença alguma de substância, de poder, de vontade ou de operação.

Erros dos macedonianos

Detestamos os arianos, que querem haja alguma distância entre o Pai e o Filho. Detestamos também os macedonianos que, apesar de admitirem a igualdade entre o Pai e o Filho, julgam que o Espírito Santo é de natureza inferior, não considerando estarem incorrendo na blasfêmia que não será perdoada no século presente, nem no futuro juízo, pois disse o Senhor: “Aquele que falar contra o Filho do homem ser-lhe-á perdoado; mas, a quem falar contra o Espírito Santo, não lhes será perdoado, nem neste século, nem no futuro” (Mt 12,32). Quem permanece nessa impiedade não tem perdão por excluir aquele que poderia testemunhar em seu favor e jamais alcançará o remédio da indulgência, por não ter advogado que o patrocine.
Do Espírito Santo provém a invocação do Pai, as lágrimas dos penitentes, os gemidos dos suplicantes: “Ninguém pode dizer: ‘Jesus é o Senhor’ senão pelo Espírito Santo” (1Cor 12,3). O Apóstolo prega claramente que a onipotência deste é igual à do Pai e à do Filho e uma só é a divindade, dizendo: “Ora há diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo; há diversidade de ministérios, mas o Senhor é o mesmo; há diversidade de operações, mas é o mesmo Deus que opera tudo em todos” (1Cor 12,4-6).

O Espírito santificador, na Igreja

Por meio destas e de inúmeras outras provas, pelas quais corusca a autoridade das palavras divinas, incitem-nos a unanimemente celebrar o Pentecostes, exultando em honra do Espírito Santo que santifica toda a Igreja católica, instrui todos os espíritos racionais. Ele é inspirador da fé, doutor da ciência, fonte da dileção, sinete da castidade, causa de todas as virtudes.
Alegrem-se os corações de todos os fiéis, porque no mundo inteiro é louvado e confessado por todas as línguas o Deus único, Pai, Filho e Espírito Santo. O significado da figura do fogo, que apareceu persiste por sua operação e por seu dom. O mesmo Espírito da verdade faz brilhar a morada de sua glória no esplendor de sua luz, e nada quer em seu templo de tenebroso ou de tépido.Seu auxílio e seu ensinamento já nos obtiveram a purificação pelos jejuns e as esmolas. Segue-se a este dia venerável uma observância salutar, cuja utilidade todos os santos sempre experimentaram.
Nossa solicitude pastoral nos leva a exortar-vos a praticá-la com ardor, de modo que se, nesses últimos dias, alguém houver contraído algumas máculas por negligência incauta, penitencie-se com o jejum e emende-se com a devoção da piedade.
Jejuemos, portanto, quarta e sexta-feira; sábado com a devoção de costume celebremos as vigílias.
Por Jesus Cristo nosso Senhor, que com o Pai e o Espírito Santo vive e reina nos séculos dos séculos. Amém.

ASCENÇÃO DE CRISTO - PARTE 2

 


A ascensão é nossa alegria; aumenta-nos a fé e a esperança

O mistério de nossa salvação, caríssimos, que aquele, por quem foi criado o universo, avaliou pelo preço de seu sangue, realizou-se num desígnio de humildade, desde o dia do nascimento corporal até o termo da paixão. E embora da natureza de servo já se irradiassem muitos sinais da divindade, aquele período propriamente serviu para demonstrar ser verdadeira a humanidade que ele assumira. 
Depois da paixão, contudo, rompidas as cadeias da morte, que perdera seu vigor atacando quem não podia conhecer o pecado, a fraqueza mudou-se em força, a mortalidade em eternidade, o opróbrio em glória. 
Nosso Senhor Jesus Cristo deu desta glória numerosas e manifestas provas e evidenciou-a a muitos, até introduzir também nos céus o triunfo da vitória que obtivera dentre os mortos. 
Se, na solenidade pascal, a ressurreição do Senhor foi causa de nossa alegria, sua ascensão aos céus é motivo presente de gáudio, enquanto rememoramos e veneramos devidamente aquele dia em que a humildade de nossa natureza em Cristo foi elevada acima de todas as milícias do céu, das ordens dos anjos, além dos postos excelsos de todas as potestades, ao trono de Deus Pai. 
Estas obras divinas nos consolidam, nos edificam, porque tanto mais admirável se torna a graça de Deus, quanto, apesar de distante dos olhares humanos o que incute reverência, a fé não hesita, a esperança não vacila, não se esfria a caridade. Próprio do vigor dos grandes espíritos e luz das almas bem fiéis é crer firmemente o que não se vê com os olhos corporais, fixar o desejo onde o olhar não penetrar. 
Como nasceria a piedade em nossos corações ou como seria alguém justificado pela fé, se nossa salvação consistisse apenas no que é visível? Por isso, disse o Senhor àquele que parecia duvidar da ressurreição de Cristo se não pudesse verificar pela vista e pelo tato as cicatrizes da paixão em sua carne: “Creste porque viste. Felizes os que crêem sem terem visto!” (Jo 20,29).

Cristo subiu aos céus para nos tornar capazes da bem-aventurança. O que era visível, agora passou para os mistérios

A fim de sermos capazes, caríssimos, desta felicidade, nosso Senhor Jesus Cristo, tendo consumado a pregação evangélica e os mistérios do Novo Testamento, no quadragésimo dia após a ressurreição, diante de seus discípulos, elevou-se aos céus (Lc 24,51; Mc 16,19). Pôs termo à sua presença corporal, havendo de permanecer à direita do Pai até que decorram os tempos determinados por Deus para se propagarem os filhos da Igreja, e ele volte a fim de julgar os vivos e os mortos, no mesmo corpo com o qual subiu. 
Tudo o que havia de visível em nosso Redentor, passou para os mistérios. 
Para tornar a fé melhor e mais firme, à visão sucedeu a doutrina, a cuja autoridade obedeceriam os corações dos fiéis iluminados pelos raios vindos do alto. 

Fé de tal modo fortificada pela ascensão, que nenhum tormento pôde superar, mesmo nas crianças

Nem vínculos, nem cárceres, nem exílios, nem fogo, nem dilaceramento das feras, nem suplícios requintados da crueldade dos perseguidores atemorizaram esta fé, aumentada pela ascensão do Senhor e fortificada pelo dom do Espírito Santo. Por ela, em todo o mundo, não só os homens, mas ainda as mulheres, não somente os meninos, mas também as frágeis virgens, combateram até a efusão do próprio sangue. 
Tal fé expulsou os demônios, curou as doenças, ressuscitou os mortos. 
Até os santos apóstolos que, apesar de confirmados com tantos milagres, instruídos com tantos sermões, se haviam horrorizado com a atrocidade da paixão do Senhor, e não tinham aceitado sem hesitação a realidade da ressurreição, fizeram tal progresso com a ascensão de Cristo que tudo o que antes lhes incutira medo se converteu em alegria. A contemplação de seu espírito atingiu a divindade daquele que se assentara à direita do Pai. Já não se retardavam no objeto da visão corpórea, dirigindo a atenção da mente para quem ao descer não se afastara do Pai, nem se apartara dos discípulos ao subir. 

Maior “presença” pela divindade após a ascensão. Significado das palavras dos anjos

O filho do homem, Filho de Deus, caríssimos, se revelou de modo mais excelente e sagrado quando se recolheu à glória da majestade paterna. Mais distante pela humanidade, de maneira inefável começou a estar mais presente pela divindade. Então, a fé mais esclarecida, pelos passos do espírito foi acedendo ao Filho, igual ao Pai, sem necessitar tocar a substância corpórea de Cristo, pela qual é menor do que o Pai. 
Manteve sua natureza, o corpo glorificado; a fé dos fiéis era convidada até onde podia atingir o Unigênito igual ao Pai, não com as mãos corporais, mas com o entendimento espiritual. 
Por tal motivo, o Senhor, depois da ressurreição, disse a Maria Madalena, quando esta, representando a Igreja, se precipitou para tocá-lo: “Não me retenhas porque ainda não subi para o Pai” (Jo 20,17), isto é, não quero que venhas corporalmente para junto de mim, nem me reconheças por meio dos sentidos. Conduzo-te a realidades mais sublimes. Preparo-te bens maiores. Quando subir a meu Pai, então com mais perfeição e verdade tocar-me-ás, havendo de aprender o que não apalpas e crer no que não vês. 
Quando os olhos dos discípulos, cheios de admiração e atenção, se erguiam e acompanhavam o Senhor que subia aos céus, apareceram diante deles dois anjos, fulgurantes na brancura admirável das vestes, que disseram: “Homens galileus, por que estais a olhar para o céu? Esse Jesus, que do meio de vós foi elevado para o céu, assim há de vir, da mesma maneira que o vistes ir para o céu” (At 1,1). Tais palavras davam a conhecer a todos os filhos da Igreja a necessidade de crerem que Jesus Cristo há de voltar visivelmente no mesmo corpo com o qual subiu. Não podem duvidar de que tudo está sujeito àquele a quem desde o seu nascimento corporal os anjos prestaram serviço. 
O anjo anunciou à bem-aventurada Virgem que Cristo haveria de ser concebido do Espírito Santo. 
Quando nasceu da Virgem, também a voz dos anjos celestes cantou para os pastores. Os primeiros testemunhos dos mensageiros do alto ensinaram que ele havia ressuscitado dos mortos. Assim igualmente o ministério dos anjos apregoou que há de vir na própria carne para julgar o mundo. Podemos compreender quantas potestades serão assessoras no juízo, se, ao ser julgado, tantas o serviram. 

Peregrinos, como nos estimula a ascensão de Cristo, desprezemos as coisas terrenas, e aproximemo-nos, enriquecidos pela caridade, de Cristo

Exultemos, portanto, caríssimos, com gáudio espiritual e alegrando-nos junto de Deus com adequadas ações de graças, levantemos os desimpedidos olhos de nossos corações às alturas onde Cristo se encontra. Os desejos terrenos não deprimam os espíritos chamados para o alto. Não ocupem as coisas perecíveis os predestinados à eternidade. Os atrativos enganadores não retardem os que ingressaram no caminho da verdade. Os fiéis atravessem os tempos reconhecendo-se como peregrinos no vale deste mundo. Se aqui, certas comodidades atraem, não sejam perversamente abraçadas, mas com fortaleza, se passe além. O apóstolo são Paulo incita-nos a tal fervoroso devotamento e admoesta-nos com a caridade que, a fim de apascentar as ovelhas de Cristo nele nasceu pela tríplice profissão de amor ao Senhor: “Caríssimos, exorto-vos, como a estrangeiros e peregrinos cá embaixo, a abster-vos dos desejos carnais, que guerreiam a alma” (1Pd 2,11). Em favor de quem milita, as volúpias carnais senão do diabo, que se compraz em prender aos deleites dos bens corruptíveis, as almas que tendem aos supernos, e subtrair-lhes os tronos por ele perdidos. Todo fiel sabiamente vigie contra as suas insídias para poder vencer a tentação do inimigo. 
Nada é mais forte, caríssimos, contra os dolos do diabo do que a benignidade da misericórdia e as larguezas da caridade, pelas quais se evita ou se vence todo pecado. Não é possível, contudo, apreender a sublimidade desta virtude antes de ser derrotado o adversário dela. Que há de mais avesso à misericórdia e às obras de caridade do que a avareza, de cuja raiz brotam todos os males? 
Se não for sufocada no que a fomenta, necessariamente no campo do coração, onde a planta deste mal se arraigou, nascerão os espinhos e abrolhos dos vícios, em vez de semente da verdadeira virtude. 
Resistamos, pois, a tão pestífero mal, caríssimos, e sigamos a caridade, sem a qual virtude alguma pode brilhar (1Cor 13). 
Pelo caminho da caridade, por onde desceu Cristo até nós, possamos subir até ele; ao qual com Deus Pai e o Espírito Santo, honra e glória nos séculos dos séculos. Amém